Migrações literárias e artísticas / Literarische und künstlerische Migrationen
África – Brasil – Europa/ Afrika – Brasilien – Europa
Summary
Excerpt
Table Of Contents
- Cobertura
- Título
- Copyright
- Sobre o autor/o editor
- Sobre o livro
- Este eBook pode ser citado
- Índice
- Prefácio (Verena Dolle / Helena Bonito Pereira)
- Colaborações
- Seção 1: Ficção
- Visões da África na obra de Lima Barreto (Irenísia Torres de Oliveira)
- Jorge Amado und die positive Einschreibung Afrikas in die brasilianische Literatur (Ute Hermanns)
- Portugueses e africanos em Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro (Helena Bonito Pereira)
- Emigranten zwischen Kontinenten – Realitäten der fiktionalen Welt (Helmut Siepmann)
- Violência, felicidade e exílio: a importância do pensamento de Albert Camus na contemporaneidade (Maria Teresa Salgado Guimarães da Silva)
- Luís Bernardo Honwana e a representação da infância (Ricardo Iannace/ José Nicolau Gregorin Filho)
- Polifonia e diferentes imagens de África em O outro pé da sereia de Mia Couto (Benjamin Meisnitzer)
- Seção 2: Poesia
- A síntese amorosa na figura da mulher em fragmentos poéticos de Gregório de Matos e Guerra (Érica Schlude Wels)
- A representação do africano na literatura brasileira: a poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade (Maria Rosa Duarte de Oliveira)
- Orfeu miscigenado: mito e sociedade em Jorge de Lima (Daniela Neves)
- Seção 3: Historiografia
- Áfricas possíveis no Almanach de lembranças luso-brasileiro (Débora Leite David)
- De loas, autos e escritos memorialísticos. Genealogia literária e memórias cruzadas da emergência de uma figura singular: a Rainha de Congo no maracatu fortalezense. Ceará. Brasil (1873–1930) (Franck Ribard)
- Seção 4: Literatura e Outras Artes
- A razão do estado na obra de Abdulai Sila (Ineke Phaf-Rheinberger)
- Afro-brasilianische Kulturkontakte in den Comics von André Diniz (Janek Scholz)
- Anexo
- Uma alegoria do destino humano: Navio de emigrantes de Lasar Segall (Anne Begenat-Neuschäfer †)
- Referências Bibliográficas
- Os Autores
- Index Nominorum
- Obras publicadas na série
Este volume Migrações literárias e artísticas. África – Brasil – Europa reúne, em primeiro plano, contribuições apresentadas e intensamente discutidas na Seção de mesmo nome do 10° Congresso Alemão dos Lusitanistas em Hamburg, em setembro de 2013, cujo tema era “Migração e Exílio”. Anne Begenat-Neuschäfer foi a responsável pela organização da Seção e por assegurar participantes da Europa e do Brasil. Estamos contentes agora de podermos, finalmente, apresentar os artigos publicados aos interessados da área.
A demora na publicação deve-se, por um lado, ao financiamento em aberto por longo tempo e à procura de uma editora. Ambos problemas puderam ser resolvidos graças à iniciativa de Benjamin Gaca, colaborador de longos anos de Anne Begenat-Neuschäfer no Instituto de Filologia Românica da RWTH Aachen, também responsável pelo trabalho de edição dos manuscritos de Aachener Beiträge zur Romania, Sprachen – Literaturen – Kulturen. Por outro lado, a demora também ocorreu devido ao adoecimento grave e repentino de Anne, obrigando-a a concentrar todas as suas forças na convalescência e na luta contra o câncer, uma luta que ela empreendeu com admirável perseverança, coragem e pensamento positivo, mas que, porém, perdeu em março do ano passado.
E agora temos esta tarefa de concluir o volume como um legado em memória a nossa cara colega e a seu mérito profissional para a Lusitanística. Por esta razão, decidimos também publicar, no apêndice, seu artigo “Uma alegoria do destino humano: Navio de emigrantes de Lasar Segall”, o qual ficou fragmentado, de repente interrompido, mas planejado por ela para este volume, e que seu filho Martin achou no seu computador, colocando-o à nossa disposição: em memória de uma investigadora que lutou incansável e persistentemente pelos estudos literários, pela manutenção da Filologia das Línguas Românicas na Universidade Técnica de Aachen (RWTH), pela lírica e pela literatura contemporânea da África, da Europa e do Brasil.
Gießen e São Paulo, Setembro de 2018
Verena Dolle,
Helena Bonito Pereira
Visões da África na obra de Lima Barreto
Abstract: The Afro-Brazilian writer Lima Barreto (1881–1922) belongs to the first generation growing up after the abolition of slavery. In his novels, chronicles and diaries, he refers to the African continent as the “ancient homeland”. These references as well as the author’s position on the African cultural heritage in Brazil are discussed in this essay.
A terra dos ancestrais
Lima Barreto não escreveu diretamente sobre a África, talvez porque, pelo que se depreende de suas crônicas, não houvesse muitas informações sobre a vida no continente, naquele início do século XX, no Brasil. Ele comenta em uma crônica a observação feita pelo político socialista francês Jean Jaurès, em passagem pelo Rio, de que nossos jornais traziam poucas informações sobre a vida no estrangeiro. “Afora os telegramas lacônicos naturalmente, ele não encontrava nada que o satisfizesse”1. Na falta de informações que não fossem os breves “telegramas” publicados nos jornais, sempre na perspectiva e interesse dos países colonizadores, e de contatos mais diretos, a África apareceu nos escritos de Lima Barreto sobretudo como um lugar do passado, como o lugar de onde tinham vindo seus avós.
A menção à África na obra de Lima Barreto é, por si mesma, uma atitude de afirmação de suas origens, ao lembrá-las e assumi-las. A consideração das origens africanas constitui também uma visão própria do escritor sobre a identidade brasileira. Para ele, o africano teria contribuído mais substancialmente que todos os povos migrados para a formação de uma nação brasileira, porque não tinha uma pátria para onde voltar2. Essa visão é corroborada pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro, para quem a referência africana para os negros brasileiros era avassaladora, mas também extremamente indefinida3. Isso explica, por um lado, o ← 19 | 20 → profundo enraizamento do africano na nova terra, mas, por outro, talvez explique também – tempos depois – a referência simpática, mas genérica e centrada no passado, que o descendente escritor faz ao continente.
A referência mais próxima à África contemporânea, Lima Barreto faz numa crônica dedicada a Manuel de Oliveira, um amigo e agregado da família, por ocasião de seu falecimento. Para homenageá-lo, o escritor relembra a vida e a pessoa do amigo humilde. Manuel tinha vindo da África ainda criança e fora comprado por um horteiro português, a quem servira praticamente a vida inteira, até conseguir dinheiro suficiente para comprar sua alforria. Casara-se e continuara trabalhando para o horteiro, mas um dia fora abandonado pela esposa e perdera a razão. Passara a viver na rua, sem qualquer cuidado de si e fora um dia recolhido à colônia de alienados, onde o pai de Lima era administrador. Fizera amizade com a família de João Barreto, recuperara-se e, mesmo depois de receber alta, permanecera morando na casa do administrador, como agregado4.
Lima relembra como o homem humilde o ajudara na doença de seu pai, inclusive emprestando-lhe o dinheiro de suas economias. Também não deixa de mencionar a característica mais “original” de Manuel: o grande amor e orgulho que ele ← 20 | 21 → tinha por sua “dolorosa Costa d’África”5 e, sobretudo, pela nação cabinda6. À terra do amor e do orgulho de Manuel, o escritor brasileiro descendente de africanos, com simpatia e estranheza ao mesmo tempo, contrapõe uma mater dolorosa, que ele conhece não do relato dos africanos, mas escassamente da literatura (o ponto de vista de Castro Alves?) e de livros e jornais. Percebe-se que o escritor não leva muito a sério o orgulho de Manuel. E, no entanto, Cabinda era um lugar em que havia se constituído uma identidade bastante arraigada e tivera mesmo um progresso em relação a outras “províncias ultramarinas” de Portugal.
Independente de que esse orgulho tivesse um fundamento social e de que a visão do escritor se ressentisse da falta de informações mais precisas, deve ter sido o ufanismo de Manuel que despertou a desconfiança de Lima Barreto sobre seu discurso. Não é a toa que registra na crônica: “Para ele, cabinda era a nacionalidade mais perfeita e superior da Terra. Nem todo o negro podia ser ← 21 | 22 → cabinda”7. Evidentemente, Lima Barreto tratava o patriotismo de Manuel com certa condescendência, porque não fazia mal a ninguém. No romance Triste fim de Policarpo Quaresma (1911), o escritor contrapõe à exaltação da pátria uma visão crítica da sociedade, que, no seu modo de considerar, não contradizia o amor ao país. Numa polêmica envolvendo Monteiro Lobato e a personagem Jeca Tatu, quando o escritor paulista foi acusado por outros intelectuais de difundir uma imagem pouco lisonjeira dos habitantes do interior brasileiro, Lima Barreto o defendeu argumentando que Lobato mostrava apenas as mazelas do interior de São Paulo e que as mostrava por amar a região em que nascera e em que vivia. “É ela que ele descreve com tanta ternura e emoção contida nos seus livros de ficção”8. O argumento com que Lima defende Lobato é o ponto de partida de um pensamento crítico, que se propõe mostrar as mazelas, não para desprezar ou diminuir, mas para transformar. No campo do pensamento, no começo do século XX, essa posição superava uma dualidade muito comum entre nossos intelectuais, que se dividiam entre o ufanismo da terra grande e o desprezo da realidade local.
Nos grandes jornais do começo do século XX no Rio de Janeiro, a África era tratada, em termos gerais, como um lugar selvagem e hostil (misterioso, tenebroso, de tribos refratárias à civilização, etc.), não doloroso9. As regiões específicas apareciam normalmente relacionadas às nações colonizadoras, eram “zonas de influência” a serem controladas em tratados e guerras coloniais. Então, assumir a África como origem e como parte da identidade brasileira para um intelectual nesse momento não era fácil; pelo contrário, era uma atitude política desafiadora10. ← 22 | 23 →
No romance Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, o narrador Augusto Machado assume que a África e Portugal representam as origens do “homem deste lugar”. E considera que nada da história comum, nada do que acontecera estava perdido para o homem brasileiro, desde que seus avós “se desprenderam” da África e de Portugal11. Embora considerasse que os africanos tinham uma relação mais profunda com a nacionalidade brasileira que outros povos migrados, como vimos antes, a proposta do autor é integradora. O trecho oferece uma visão de harmonia, talvez similar à que Graça Aranha propusera no romance Canaã, de 1902, no qual dois alemães disputam em solo brasileiro concepções diferentes de raça e de sociedade. A diferença é que a harmonia, no romance de Lima, aparece no começo e não no fim do romance. Na visão do jovem Augusto Machado, africanos e portugueses geraram o homem em perfeita harmonia com a natureza do lugar, formado em sintonia com suas montanhas, seu mar e sua melancolia e um expressa o outro. Mas os conflitos aparecem depois, quando entram em cena as relações sociais. E eles são tão agudos, desesperados, dirigindo-se a impasses não a soluções, que lançam para trás uma dúvida sobre aquela harmonia do início, entre origens, formação e natureza, e revelam a força das relações sociais.
Explorando um pouco mais o assunto, a imagem de harmonia entre os homens (de diversas origens) e a natureza brasileira, no romance de Lima Barreto, talvez respondesse à necessidade que o escritor sentiu de intervir incisivamente no debate racial da época. Contra o pessimismo das teorias raciais, para as quais negros e mestiços seriam inferiores e incivilizáveis12, ele afirma um projeto de nação que pode ser construído por vários povos em consonância com a natureza do lugar, respeitando suas particularidades. Existe uma referência ao Canaã de Graça Aranha nessa passagem, mas também a Os sertões de Euclides da Cunha. O sertanejo, no livro de Euclides, aparece como superior aos mestiços do litoral no aspecto ← 23 | 24 → da adaptação ao meio, ou seja, por sua adequação a uma natureza extremamente áspera. Ainda assim, ele pereceria inexoravelmente na disputa com raças superiores. Na imagem proposta por Lima, o discurso da superioridade/inferioridade, ou seja, da hierarquia racial, deixa de ser pertinente, porque uma relação mais forte, profundamente formadora, se coloca como mediadora entre o homem (sem distinção de raça) e a natureza circundante. O interessante é que essa relação inclui o passado – todos os fatos do passado, do qual nada foi perdido.
A imagem de harmonia tem aspectos muito interessantes, mas se ressente da falta de relações com os conflitos do presente. Fica claro que a identidade social não se resolve apenas na harmonia telúrica ou numa integração cultural abstrata, mas reclama também o âmbito das relações sociais. O homem deste lugar não estava condenado à degeneração, como queriam as teorias raciais, mas ele ainda não estava acabado e o que lhe era negado não era apenas uma visão digna de homem, mas o seu presente concreto e até o seu país. Pelo resto da narrativa, o romance retrabalha a harmonia com o lugar, trazendo à baila também o preconceito e as divisões sociais. A atitude de afirmação das origens e da identidade nacional nova (em si mesma desafiadora, na época) não recalca ou minimiza as tensões do presente.
A herança africana
Mas se Lima Barreto não tinha notícias da vida na África contemporânea, para além dos movimentos das nações imperialistas, ele teria no Rio de Janeiro um contato cotidiano com a herança cultural africana, através de suas línguas, seus rituais, suas crenças e danças. Apesar das tentativas governamentais de esconder ou impedir essas manifestações na Primeira República, elas encontraram formas de permanecer, porque eram muito disseminadas e arraigadas na sociedade carioca.
Medidas adotadas após a proclamação da República, em 1889, objetivaram reprimi-las e afastá-las do centro aburguesado das cidades. O Código Penal de 1890, editado ainda antes da primeira constituição republicana, estabeleceu como crime as práticas de capoeiragem, curandeirismo, espiritismo, mendicância e vadiagem. No contexto imediato pós-abolição, é fácil perceber que tais regras eram voltadas sobretudo ao controle das populações negras, visando não apenas disciplinar, mas criminalizar sua situação e comportamento sociais. As leis promoviam o recalque daquilo que não cabia na concepção vigente de civilização, do que não parecia com a Europa, do que podia envergonhar o brasileiro culto diante do europeu. As reformas urbanísticas no centro do Rio de Janeiro, no início do século XX, seguiriam a mesma orientação ideológica. ← 24 | 25 →
Details
- Pages
- 236
- Publication Year
- 2017
- ISBN (PDF)
- 9783631768440
- ISBN (ePUB)
- 9783631768457
- ISBN (MOBI)
- 9783631768464
- DOI
- 10.3726/b14699
- Language
- Portuguese
- Published
- Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Warszawa, Wien, 2018. 236 p., 1 tab. b/w
- Product Safety
- Peter Lang Group AG