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Poesia-Crítica-Tradução

Haroldo de Campos e a educação dos sentidos

by Eduardo Jorge De Oliveira (Volume editor) Kenneth David Jackson (Volume editor)
©2022 Edited Collection 414 Pages

Summary

O livro reúne vinte e um ensaios sobre a obra do poeta, crítico e tradutor brasileiro Haroldo de Campos (1929 - 2003), mais uma entrevista inédita com o autor realizada em Paris em meados dos anos oitenta. Os ensaios exploram as múltiplas facetas de Haroldo de Campos, um nome incontornável das letras brasileiras na segunda metade do século XX e na virada do século XXI.

Table Of Contents

  • Cobertura
  • Título
  • Copyright
  • Sobre o autor
  • Sobre o livro
  • Este eBook pode ser citado
  • Sumário
  • Haroldopédia ou a educação do poeta (Kenneth David Jackson e Eduardo Jorge de Oliveira)
  • I SIGNÂNCIAS
  • Uma questão de relação: A reconfiguração do ideograma poundiano por Haroldo de Campos (Marjorie Perloff)
  • No ateliê de Haroldo de Campos, coreógrafo da palavra (Kenneth David Jackson)
  • Vanguarda e cosmopolitismo no intercâmbio entre Grupo Noigandres e Escola da Stuttgart: um panorama da correspondência entre Haroldo de Campos e Elisabeth Walther / Max Bense (Simone Homem de Mello)
  • Galáxias perdidas: a poesia de Haroldo de Campos em A máquina do mundo repensada (Piero Boitani)
  • O ideograma em Haroldo de Campos: uma revisitação (Osvaldo Manuel Silvestre)
  • II VOO ININTERRUPTO: ESTÉTICA E POLÍTICA
  • Lumpenproletária: algumas reflexões sobre poesia e política na obra de Haroldo de Campos (Diana Junkes)
  • Potência intensiva: multiarticulação, afeto, ideograma e política em Haroldo de Campos (Adam Joseph Shellhorse)
  • O Impossível (Craig Dworkin)
  • Cantos paralelos: Haroldo de Campos e a arte da paródia (Eduardo Jorge de Oliveira)
  • A poesia (não)apofântica de Haroldo de Campos (Nathaniel Wolfson)
  • III O COSMONAUTA DO SIGNIFICANTE
  • O concreto, o conceitual, e as Galáxias (Antonio Sergio Bessa)
  • O concreto trans-epocal (Gustavo Reis Louro)
  • Topografias do século XX: a poética do tropeço memorial nas Galáxias de Haroldo de Campos (Jasmin Wrobel)
  • Uma viagem à origem da linguagem: Início, percurso e poliglotismo em galáxias de Haroldo de Campos (Odile Cisneros)
  • Haroldo de Campos: atualizações verbivocovisuais (Rafael Lemos)
  • IV TRANSCRIAÇÕES: DO BARROCO E DA TRADUÇÃO ANTROPOFÁGICA
  • Começos impossíveis: uma leitura da poesia inicial de Haroldo de Campos (Craig Osterbrock)
  • Tradução e utopia em Haroldo de Campos (Gabriel Borowski)
  • Tradução canibal? Sobre a poética da tradução de Haroldo de Campos (Melanie Strasser)
  • Uma tradução a quatro mãos: Galaxies de Haroldo de Campos (Inês Oseki-Dépré)
  • Ulisses entre caos e criação. Uma transcriação italiana de Finismundo e a poética do naufrágio (Giacomo Berchi)
  • Augusto de Campos, a crítica transformada e a leitura plagiotrópica (Patrícia Lino)
  • Haroldo de Campos, um canibal planetário. Entrevista inédita com Jacques Donguy (Jacques Donguy)
  • Linha do tempo de Haroldo de Campos
  • Obras publicadas na série

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Kenneth David Jackson e Eduardo Jorge de Oliveira

Haroldopédia ou a educação do poeta

Introdução

1 Um cálculo ao coração, um aluno do instinto

Haroldo de Campos é um poeta da educação dos sentidos. No seu caso, a poesia permanece indissociável da crítica e da tradução. E, portanto, cada poema mantém uma autonomia no projeto do autor. “Ciropédia ou a educação do príncipe”, de 1951, por exemplo, não deixa de ser um poema concreto na acepção reivindicada por ele: “toda poesia digna deste nome é concreta: de Homero a Dante, de Goethe a Pessoa” (CAMPOS, 1992a, p. 7). “Ciropédia” pode ser entendido como um manifesto da sensibilidade movido pelos cálculos do coração, pela força do acaso e pela matemática particular dos sentidos. Esta última, em particular, faz com que a palavra seja exata no rigor das emoções que é a literatura: “a equitação do verbo” (CAMPOS, 1992a, p. 31) ou “o peso das vogais” (CAMPOS, 1992a, p. 33), como se lê no poema. Há uma dimensão bifocal na obra de Haroldo de Campos capaz de transportar o leitor do peso das vogais à concretude da crítica e da tradução. Por um lado, é possível a leitura detalhada do poema, com atenção voltada aos níveis semânticos, sintáticos, retóricos, tácteis, visuais e sonoros, o que contribui para uma poesia racionalmente sensorial e sensorialmente racional, a tal ponto que Haroldo de Campos faz com que tais categorias se tornem zonas instáveis diante da exatidão do poema. Por outro lado, imerso na prática do poema, Haroldo de Campos produziu páginas memoráveis na crítica e na análise de outros poetas e autores, além de ter contribuído imensamente ao campo da tradução, a tal ponto que o termo “transcriação” tornou-se inseparável do seu nome. Como escreveu em Ciropédia: “Beber desta água é uma sede infinita” (CAMPOS, 1992a, p. 35).

Ainda que a poesia seja tema e motor da própria poética de Haroldo de Campos, isso não a circunscreve apenas ao plano metalinguístico, pois os procedimentos utilizados pelo autor chamam a atenção tanto para os sentidos quanto para a particularidade de cada poema. É declinando Marx (“Die Bildung der fünf Sinne ist eine Arbeit der ganzen bisherigen Weltgeschichte/ A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda história universal até agora” [CAMPOS, 1985, p. 5]) que Haroldo de Campos chega ao “táctil o dançável / o difícil / de se ler / legível / visibilia / invisibilia / o ouvível / o inaudito / a mão / o olho / a ←11 | 12→escuta / o pé / o nervo / o tendão” (CAMPOS, 1985, p. 13–14). Diferentemente de Marx, o poeta é um agente dos intervalos, dos espaços cegos do universal. Ele provoca ações particulares para levar ao mundo dos sentidos aquilo que ainda não foi sentido — ou que pode ser sentido novamente e, ainda, de modo inédito.

Haroldo de Campos foi um poeta que recolheu os cacos da história universal. Ao longo dos seus livros, do seu percurso poético, ele permaneceu um aluno do instinto e, pouco a pouco, a sua Ciropédia nos legou uma Haroldopédia, isto é, uma aventura singular pelas páginas do mundo sem negar a força contingente do próprio mundo, pois é nela que se dá a educação permanente dos sentidos. Educados, mas não submissos, os sentidos circulam tanto pelos anos-luz de alguma galáxia distante quanto são capazes de recuar no tempo para recuperar algum motivo babilônico, algum detalhe da guerra de Troia, do percurso de Dante, ou um motivo em jade perdido no oriente. Par droit de conquête, Haroldo de Campos tomou posse da história universal, sendo capaz de fazer com que vários tempos soem simultaneamente na língua portuguesa.

2 Crítico e canibal: um olhar preciso, táctil e voraz

Em um dos seus primeiros ensaios, “A obra de arte aberta” (publicado no Diário de S. Paulo, em 03.07.1955), Haroldo de Campos descreve uma vertente decisiva para o desenvolvimento da sua obra, da obra de arte que evita fórmulas convencionais, permitindo a interação de ideias e de materiais que atendem aos processos morfoculturais da linguagem artística contemporânea, cujos exemplos mais avançados são identificados em Pound, Mallarmé, Joyce, Cummings e nas composições de Anton Webern. Ele abandona a estrutura linear e adota uma noção visual do espaço gráfico para enfatizar o detalhe ou o núcleo que engloba um universo inteiro, a ponto de conceber o poema em termos de objeto feito de elementos estruturais simples e fundamentais.

Com um olhar crítico, Haroldo de Campos unificou a sua obra poética com poesia crítica e tradução. No ensaio “Da tradução como criação e como crítica” (1962), insiste que a tradução só é possível com um olhar crítico à linguagem e à tradição literária. A colaboração com o semiólogo Max Bense, nas viagens a Stuttgart, e a leitura dos formalistas russos contribuíram com seu conceito de “informação estética”, o qual o levaria sempre a uma re-escritura do texto original. O que foi denominado por ele “transcriação” funciona em virtude de um olhar preciso e voraz que devora o original e o transforma esteticamente, a ponto de uma tradução também se tornar um original. A formação do conceito de transcriação anda de mãos dadas com a antropofagia oswaldiana, tema ←12 | 13→do decisivo ensaio “Da razão antropofágica”, que trata de escritores do Novo Mundo desde um ponto de vista transatlântico. Quando esses são confrontados com os padrões de uma literatura europeia, podem atuar saudavelmente como “novos bárbaros”, mais atuais e inovadores, sendo ainda os porta-vozes de uma “politópica e polifônica civilização planetária” aberta (CAMPOS, 1992b, p. 255). Foi através dessa lente antropofágica que Haroldo de Campos dirigiu os contatos com um vasto mundo literário desde a sua biblioteca, também denominada por ele de galáctico observatório brasileiro plantado em São Paulo.

3 Das línguas do mundo babélico e pós-babélico: devires maternos do português

Como explica no prefácio à quarta edição da coletânea de ensaios Metalinguagem e outras metas (CAMPOS, 1992b), Haroldo de Campos se situava na década de 1960 perante uma geração de escritores brasileiros contemporâneos, selecionados e analisados pela contribuição à renovação da linguagem e à criação de nova informação estética. Já publicara um primeiro estudo sobre Oswald de Andrade (1890–1954) no Suplemento dominical do Jornal do Brasil em 1957. Durante a década seguinte, num período áureo para a teorização e divulgação do movimento da Poesia Concreta com a publicação das revistas Noigandres (1952–1962) e Invenção (1962–1967), Haroldo de Campos procurou novas fontes de inovação estética na prosa e na poesia brasileiras. Lançou uma série de ensaios em O Estado de São Paulo: do redescobrimento de Oswald (“Lirismo e Participação” e “Estilística Miramarina”, em 06.07.1962 e 24.10.1962, respectivamente) passou a João Guimarães Rosa (“A Linguagem da Iauaretê”, em 22.12.1962) e aos poetas Carlos Drummond de Andrade (“Drummond: Mestre de Coisas”, em 27.10.1962), Murilo Mendes (“Murilo e o Mundo Substantivo”, em 1963), João Cabral de Melo Neto (“O Geômetra Engajado”, em 1963) e Manuel Bandeira (“Bandeira: O Desconstalizador”, em 16.04.1966). Adotou uma posição crítica quanto à expressão da nacionalidade em literatura, visível nos ensaios “A poesia concreta e a realidade nacional” e “Da tradução como criação e como crítica”, ambos de 1962. Naquele ano, com Augusto de Campos, publicou o primeiro ensaio sobre Sousândrade e o poema O Guesa, descobrimento essencial para uma visão inovadora da linguagem poética brasileira.

Numa fotografia de Haroldo de Campos dando aula sobre a literatura brasileira em Stuttgart, em 1964, convidado pelo semiólogo Max Bense, estão espalhados pelo quadro os nomes de dezenas de autores brasileiros de todas as épocas. Trata-se de uma aula que atesta a paixão pela literatura e a dedicação ←13 | 14→à literatura brasileira como professor dentro e fora do Brasil. Mas foi sobretudo fora do Brasil que Haroldo de Campos exerceu, com diplomacia, a arte do ensino da literatura brasileira, o que se reflete na sua ensaística. Alguns dos seus ensaios estão ligados às matérias que ministrou como professor visitante quer na Universidade de Yale, em 1978, quer na Universidade do Texas, em Austin, em 1981, exemplificados por “Iracema: uma arqueografia de vanguarda”, do curso sobre o romance, e “Arte pobre, tempo de pobreza, poesia menos”, refletindo o seminário sobre a magreza estética, ambos publicados no ano seguinte aos cursos. Ele tinha uma visão extremamente ampla, que oscilava do barroco — O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos — à poesia experimental e inovadora — “Uma Lemenskíada Barrocodélica”, ambos de 1989.

O máximo exemplo de sua fidelidade aos devires maternos do português, porém, são suas Galáxias, poesia em prosa, cujos cinquenta fragmentos, compostos entre 1963 e 1976, são verdadeiras viagens pela língua e pelo mundo do poeta. É a sua viagem homérica de invenção estética que vai levá-lo ao poema Finismundo: a última viagem (1990) e à transcriação da Ilíada (2002), a última proeza de sua vasta obra-viagem.

4 Um poeta global e barroco mundial

Haroldo de Campos foi sempre internacional na sua visão de literatura. Desde os primeiros ensaios, ele documenta o internacionalismo e o multilinguismo que caracterizam o seu trabalho poético como um todo. São exemplos disso os estudos da obra de Kurt Schwitters (1887–1948), artista alemão de multimídia conhecido pelas suas colagens; do holandês Theo van Doesburg (1883–1931), fundador do movimento De Stijl; da poesia metafísica e humoradamente absurda do poeta alemão Christian Morgenstern (1871–1914); das montagens do semiólogo alemão Max Bense (1910–1990); do poeta de vanguarda russo Vladimir Maiakovski (1893–1930); e da poesia concreta no Japão do poeta e fotógrafo Kitasono Katsue (1902–1978).

Paralelamente, Haroldo dá início a uma sequência de estudos e traduções dos autores que compõem a sua biblioteca sincrética de inovação, a partir de Mallarmé (“Lance de Olhos sobre Um Lance de Dados”, 1958). Com Augusto de Campos e Décio Pignatari, publica as primeiras traduções de Ezra Pound, com quem abre uma correspondência (Cantares de Ezra Pound, 1960), e James Joyce (Panaroma do Finnegans Wake, 1962). Com Boris Schnaiderman colabora na incontornável antologia Poesia Russa Moderna (1968). A sua visão mundial é fortalecida por ensaios sobre Edgar Allan Poe (“Edgar Allan Poe: Uma ←14 | 15→engenharia de avessos”, 1971), Francis Ponge (“Francis Ponge: a aranha e sua teia”, 1962) ou, ainda, Friedrich Hölderlin (“A palavra vermelha de Hölderlin”, 1969). A visão haroldiana se desdobra também no tempo e espaço, para traduções de Dante e Homero, Goethe, Chugang-Tsé e a poesia clássica chinesa (Escrito sobre Jade, 1996), o teatro clássico japonês (Hagoromo de Zeami: O charme sutil, 1994) e o poeta alexandrino Konstatinos Kavafis. Para Haroldo de Campos, a expressão world literature foi um verdadeiro laboratório para a língua portuguesa. Foi nela que ele realizou um grande big-bang da poesia, da crítica e da tradução.

5 Um poeta em big-bang

Desde meados dos anos 1990, a obra de Haroldo de Campos tem alcançado uma divulgação e atenção internacional intensas, com o impulso do grande congresso internacional Symphosophia, realizado em Yale em 1995, o qual contou com a presença de Haroldo e de poetas concretos de diferentes nacionalidades. Do congresso, surgiu o livro Experimental, Visual, Concrete: Avant-Garde Poetry Since the 1960s, publicado no ano seguinte. Em seguida, veio a tradução das Galáxias para o francês, feita por Inês Oseki-Dépré (1998) em diálogo com o próprio autor, além dos prêmios literários internacionais que lhe foram atribuídos em 1999: o Roger Caillois, em Paris, e o Octavio Paz, em Nova York. Os congressos de Oxford-Yale, também em 1999, comemorando seus setenta anos, resultaram nos livros Haroldo de Campos: A Dialogue with the Brazilian Concrete Poet (Oxford, 2005) e Haroldo de Campos in Conversation: in memoriam 1929–2003, editado por Bernard McGuirk e Else R. P. Vieira (Londres, 2009). Além disso, em 2007, Haroldo de Campos foi publicado em inglês em Novas: Selected Writings, por Antonio Sergio Bessa e Odile Cisneros.

No cenário contemporâneo estão aparecendo teses e livros dedicados a Haroldo de Campos, dentre os quais incluem-se Roteiros de palavras, sons, imagens: os diálogos transcriativos de Haroldo de Campos, de Jasmin Wrobel (Frankfurt am Main, 2018); Transpoetic Exchange. Haroldo de Campos, Octavio Paz and Other Multiversal Dialogues (Bucknell University Press, 2020), editado por Marília Librandi, Jamille Pinheiro Dias e Tom Winterbottom; The Translation and Transmission of Concrete Poetry, editado por John Corbett e Ting Huang (2020), sendo deste último pesquisador a tese de doutoramento “Transcreating the Ideogram: the Global Diffusion of Concrete Poetry”, finalizada em 2021 junto à Universidade de Macau. Desde então, tem sido crescente o alcance da sua obra fora do Brasil, com o impacto necessário para as reconfigurações da literatura no contexto pós-global. Que Haroldo de Campos seja um ←15 | 16→poeta, tradutor e intelectual global, eis um fato que sua produção confirma, mas inseri-lo também no contexto posterior ao advento da globalização implica em ler em detalhe suas operações críticas, propostas teóricas e pragmáticas tradutórias, sempre em diálogo com outras culturas ao redor do globo e até mesmo do cosmos.

O contato assíduo com escritores e intelectuais em âmbito internacional foi para Haroldo de Campos não apenas um método de trabalho, mas também uma necessidade, certamente cultivada pela visita a Ezra Pound na Itália nos anos 1950 e, depois, pelo diálogo com outros escritores, músicos e intelectuais na Europa. A correspondência por via aérea foi essencial para a sua autodefinição, deixando marcas na sua produção. A rede de contatos internacionais da qual ele fazia parte possibilitou trocas permanentes de obras e de traduções. Por intermédio da correspondência, dialogou e criou amizades com base em interesses comuns, em especial a poesia. Já nos anos 1960, por exemplo, publicou na série de livros rot de Max Bense, trocou traduções com o austríaco Ernst Jandl e com o escocês Edwin Morgan, assim como viu suas obras exibidas no Japão por Kitasono Katsue. Embora faltasse um selo concretista dos Correios brasileiros para a emissão de suas cartas, sobrava material de trocas que se refletem na sua produção.

6 Agoridades — Haroldo de Campos: poesia crítica tradução

Passados vinte anos desde os congressos Oxford-Yale, uma nova geração de estudiosos da obra de Haroldo de Campos se reuniu em novo congresso das universidades de Zurique e de Yale, “Jornada de Estudos Haroldo de Campos” e “Haroldo de Campos: poesia crítica tradução” (2019), o qual deu origem ao presente livro. Na Universidade de Zurique, a Jornada de Estudos Haroldo de Campos fez parte do Outubro Concreto, que contou com a exposição Augusto de Campos, um poeta concreto na Photobastei e com uma soirée no Cabaret Voltaire, com leituras de poemas da antologia bilíngue Poesie, de Augusto de Campos, realizadas pelo próprio editor da Demônio Negro, Vanderley Mendonça, e pela tradutora Simone Homem de Mello. Além disso, jovens doutorandos e pesquisadores apresentaram seus trabalhos na companhia de figuras que integraram os congressos de 1995 e 1999, como Inês Oseki-Dépré e Marjorie Perloff. A intenção do título do congresso de Yale — poesia crítica tradução, sem pontuação — foi confirmar a ligação, a integração e a coexistência, na obra de Haroldo, dessas três áreas conceituais de trabalho literário.

A coexistência dessas áreas de atuação é o que chama a atenção de uma nova geração interessada nos conceitos de Gesamtkunstwerk e World Literature, caros ←16 | 17→a Haroldo de Campos. O alcance global e pós-global da sua obra nos permite evocar uma Haroldopédia, irradiando do centro atual — que se encontra, desde 2004, no arquivo literário da Casa das Rosas, denominado Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, em São Paulo — para outros continentes. Talvez por isso o semiólogo alemão Max Bense tenha chamado Haroldo de Campos de “locomotivo de São Paulo”, exemplo de uma vida em poesia sempre a todo vapor, a exceder e transbordar os limites da escritura, sendo um poeta em big-bang, cuja escrita galáctica permite e incorpora o modo de repensar a máquina do mundo.

Dividido em quatro partes — “Signâncias”; “Voo ininterrupto: estética e política”; “O cosmonauta do significante” e “Transcriações: do barroco e da tradução antropofágica” —, o presente volume, que possui vinte e um ensaios, busca contribuir para a internacionalização da obra de Haroldo de Campos, bem como para os estudos sobre a obra do poeta, crítico e tradutor brasileiro. Na primeira parte, “Signâncias”, estão as contribuições de Marjorie Perloff e de Osvaldo Manuel Silvestre sobre aspectos do ideograma na obra poética e nas reflexões de Haroldo de Campos. Simone Homem de Mello se debruça sobre a correspondência de Haroldo de Campos com Elisabeth Walther e Max Bense, oferecendo um panorama da troca de cartas. Piero Boitani revisita a cosmopoética de A máquina do mundo repensada e Kenneth David Jackson recupera detalhes da coreografia do texto poético em Haroldo de Campos, indo ao nervo do poema: a palavra.

“Voo ininterrupto: estética e política” abre a perspectiva de um engajamento de Haroldo de Campos. Diana Junkes parte de uma das formantes de galáxias, lumpenproletária, para fazer uma leitura benjaminiana de Haroldo de Campos. Adam Shellhorse avalia a concepção de “poesia participante” a partir do poema “Servidão de passagem”, de 1962. Craig Dworkin focaliza na questão da terra tanto no poema homônimo de Décio Pignatari quanto no poema “O anjo esquerdo da história”, de Haroldo de Campos. Ambos os poemas são lidos à luz das lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Eduardo Jorge de Oliveira apresenta a paródia em termos de uma arte dos cantos paralelos, buscando uma dimensão da presença simultânea entre Glauber Rocha e Goethe, Oswald de Andrade e Antônio Vieira. Nathaniel Wolfson aprofunda o impacto do debate teórico e cultural dos anos 1950 e 1960, que vai do movimento da filosofia da linguagem à uma poética cibernética na literatura brasileira.

A terceira parte, intitulada “O cosmonauta do significante”, recupera a expressão de João Alexandre Barbosa para definir a aventura poética de Haroldo de Campos. Nela, Sergio Bessa articula o concreto e o conceitual em ←17 | 18→Galáxias. Gustavo Reis da Silva Louro explora uma noção importante nas reflexões sobre o poema pós-utópico. Aproximando-se do trabalho das Passagens, de Walter Benjamin, e de Capital, de Kenneth Goldsmith, ele propõe uma leitura trans-epocal para enfatizar que Haroldo de Campos foi um leitor atento de Benjamin. Jasmin Wrobel propõe uma “poética do tropeço” ao identificar tropeços mentais presentes, inclusive, em discursos de memória. A partir do projeto-memória “Stolpersteine”, do artista Gunter Demnin, Wrobel apresenta as pedras-obstáculos textuais em galáxias diante de uma Europa devastada pela guerra e pelos fascismos. Ainda em galáxias, Odile Cisneiros propõe um roteiro à origem da linguagem a partir dos significantes viagem, origem, linguagem. A palavra se torna um repositório desses três pontos e passa a exercer um valor mântrico numa estética de objet trouvé. Dando sequência e concluindo a aventura cósmica do significante, Rafael Lemos faz conexões constelares entre o filme de Julio Bressane, Sermões: a história de Antônio Vieira, de 1989, e o próprio livro de Haroldo de Campos: galáxias. As parcerias entre o poeta e o cineasta também renderam projetos fílmicos como “Galáxia albina”, de 1991, e “Galáxia dark”, de 1993.

Na quarta e última parte do livro, “Transcriações: do Barroco e da tradução antropofágica”, Craig Osterbrock se dedica à leitura dos primeiros poemas de Haroldo de Campos, combinando-a com aproximações entre Giambattista Vico e José Lezama Lima. Em “Tradução e utopia em Haroldo de Campos”, Gabriel Borowski rediscute os termos utopia e pós-utopia, aproximando-se de Octavio Paz. Nesse sentido, seu ensaio questiona as implicações do pensamento pós-utópico para a teoria da tradução. Melanie Strasser propõe uma leitura da tradução canibal como aquela que aciona a potência da desestabilização do original. A autora levanta os limites dos tradutores e das traduções antropofágicas. Inês Oseki-Depré apresenta o seu diálogo e reflete sobre a correspondência com o autor de galáxias para a tradução da obra ao francês. A troca é documentada por fragmentos e trechos de reflexões sobre o processo de tradução de um dos livros-chave na poética de Haroldo de Campos. Giacomo Berchi transcria para o italiano o poema Finismundo, de 1990, e, através do processo de tradução, reflete sobre a poética do naufrágio a partir de ecos das mais diversas obras literárias, dentre as quais estão as de Dante, Leopardi, Milton e Mallarmé. Com uma leitura dos poemas “Código”, de 1973, e “Pentahexagrama para John Cage”, de 1977, de Augusto de Campos, Patricia Lino propõe uma dimensão plagiotrópica na qual lê os poemas de Augusto à luz das reflexões de Haroldo.

Concluindo o volume, é apresentada uma entrevista inédita, “Haroldo de Campos: um canibal planetário”, que Haroldo cedeu ao poeta, artista e tradutor francês Jacques Donguy. A entrevista foi dada em francês, na ocasião da ←18 | 19→passagem de Haroldo de Campos por Paris, em 1985, e foi gentilmente cedida por Donguy para tradução ao português. O coordenador do Centro de Referência Haroldo de Campos, em São Paulo, Júlio Mendonça, preparou uma linha do tempo em que apresenta pontos históricos fundamentais do pensamento e da obra do autor.

Details

Pages
414
Year
2022
ISBN (PDF)
9783631875926
ISBN (ePUB)
9783631875933
ISBN (Hardcover)
9783631868355
DOI
10.3726/b19609
Language
Portuguese
Publication date
2022 (May)
Published
Berlin, Bern, Bruxelles, New York, Oxford, Warszawa, Wien, 2022. 414 pp., 31 fig. b/w.

Biographical notes

Eduardo Jorge De Oliveira (Volume editor) Kenneth David Jackson (Volume editor)

Eduardo Jorge de Oliveira é professor de literatura brasileira, cultura e media no departamento de romanística da Universidade de Zurique. Suas áreas de interesse são teorias literárias, poesia, movimentos de vanguarda, relações entre literatura e artes visuais e literatura e etnografia. Kenneth David Jackson é professor de literaturas em língua portuguesa na Universidade de Yale. Seus interesses incluem literaturas de Portugal e do Brasil, movimentos modernistas na literatura e em outras artes, literatura portuguesa e cultura na Ásia, poesia, música e etnografia.

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