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Contos Populares Portugueses de Massachusetts (Guilherme Alexandre da Silveira) / Portuguese Folktales from Massachusetts

by Manuel da Costa Fontes (Author)
©2023 Monographs LXXVI, 938 Pages

Summary

Esta é a segunda de duas coleções dedicadas ao conto popular português na América do Norte (Canadá e Massachusetts). O presente volume, que contribui para a preservação de uma tradição imemorial em via de desaparecimento, é composto por 82 contos folclóricos de carácter indo-europeu gravados em Taunton, Massachusetts. A maioria (72) foi contada por Guilherme Alexandre da Silveira, um septuagenário da ilha das Flores, o qual era sem dúvida um dos últimos grandes contadores dos Açores, e talvez de toda a Europa. Os contos foram fielmente transcritos, incluindo numerosos arcaísmos, regionalismos e alguns dos anglicismos que caracterizam a fala dos imigrantes. A introdução, em português e inglês, apresenta um panorama da imigração portuguesa para a Nova Inglaterra. Cada conto é precedido por um resumo em inglês e classificado de acordo com o catálogo internacional de Hans-Jörg Uther. Seguem-se secções dedicadas ao mundo lusófono (Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Goa, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor) e à área cultural ibérica (Espanha, América Latina e Sefarditas). Este livro, que também é de grande valor linguístico, termina com cinco apêndices: vocabulário, informantes, motivos, e dois apêndices dedicados aos tipos-conto. O primeiro classifica as histórias aqui incluídas; o segundo reúne todos os contos encontrados nas três colecções norte-americanas.

This is the second of two collections dedicated to the Portuguese folktale in North America (Canada and Massachusetts). The present volume, which contributes to preserving an ancient, disappearing tradition, consists of 82 folktales of Indo-European character recorded in Taunton, Massachusetts. Most were told by Guilherme Alexandre da Silveira, a septuagenarian from the island of Flores, who was one the last surviving great storytellers from the Azores, and perhaps all of Europe. The tales were faithfully transcribed from recordings, including numerous archaisms, regionalisms, and some of the Anglicisms that characterize immigrant speech. The introduction, in Portuguese and English, presents an overview of Portuguese immigration to New England. Each tale is preceded by an English summary, and is classified according to Hans-Jörg Uther’s international catalog. There follow sections dedicated to the Portuguese-speaking world (Portugal, Brazil, Angola, Cape Verde, Goa, Guinea-Bissau, Mozambique and Timor) and the Iberian cultural area (Spain, Latin America and the Sephardim). This book, which is of great linguistic value, ends with five appendices: vocabulary, informants, motifs, and two appendices dedicated to tale types. The first classifies the stories included here; the second brings together all the tales found in the three North American collections.

Table Of Contents

  • Cobertura
  • Título
  • Copyright
  • Sobre o autor
  • Sobre o livro
  • Este eBook pode ser citado
  • ÍNDICE
  • Prefácio
  • Introdução
  • Preface
  • Introduction
  • Bibliografia / Bibliography
  • CONTOS DE ANIMAIS / ANIMAL TALES
  • 1. A Raposa e o Leão
  • 2. As Duas Tartarugas
  • CONTOS MARAVILHOSOS / TALES OF MAGIC
  • 3. O José Mama-na-Burra
  • 4. A Bênção do Pai
  • 5. A Velha que Matava Muitíssima Gente
  • 6. As Torres de Belém: Quem Lá Vai Já Nã Vem
  • 7. O Barba Azul
  • 8. Brancaflor
  • 9. A Pena de Ouro
  • 10. A Irmã Traidora
  • 11. As Torres de Mar em Belém
  • 12. Roberto do Diabo
  • 13. O Soldado que Foi Servir o Rei por Vinte e Quatro Anos
  • 14. A Macaca
  • 15. Os Meninos com as Caras Mais Lindas do Mundo
  • 16. A Margarida dos Fundos do Mar
  • 17. O Rapaz que Foi ao Inferno Buscar o Cabelo do Diabo
  • 18. A Princesa das Pernas Vermelhas
  • 19. O Caçador
  • 20. A Carantonha
  • 21. A Gata Borralheira
  • 22. A Princesa do Verde
  • 23. O José das Peras
  • 24. O Marquês Carabás Carabós Carabus
  • 25. A Princesa Muda
  • 26. O Palácio Feito de Diamantes
  • 27. O Bom Rapaz
  • 28. Segritana
  • 29. O João Sutil
  • 30. A Vela Milagrosa
  • 31. O José do Borralho
  • 32. Os Sonhos das Três Irmãs
  • 33. A Imperatriz Porcina
  • 34. O Tanoeiro
  • CONTOS RELIGIOSOS / RELIGIOUS TALES
  • 35. O Sapateiro Feliz
  • 36. O Ladrão Gaião
  • 37. O Filho que Matou o Pai
  • 38. A Quarta Irmandade
  • 39. O Descrente
  • 40. O Preço dos Ovos
  • CONTOS REALISTAS (NOVELESCOS) / NOVELLE
  • 41. A Princesa e a Adivinha
  • 42. O Retratista de Portugal
  • 43. O João Barqueiro
  • 44. O Rapaz que Casou com a Filha dum Gigante
  • 45. O Pedro Marujo
  • 46. O Boi Arraiado
  • 47. Os Três Conselhos
  • 48. O Rapaz que Ia Sempre Ouvir Missa
  • 49. Os Quarenta Ladrões
  • 50. A Velhinha com um Ladrão Debaixo da Cama
  • 51. A Manta
  • CONTOS DO GIGANTE (DIABO) ESTÚPIDO / TALES OF THE STUPID OGRE
  • 52. Os Três Tolos
  • 53. O que Matava Sete
  • CONTOS JOCOSOS / ANECDOTES AND JOKES
  • 54. Os Velhinhos e a Morte
  • 55. O Preço da Mulher
  • 56. O Marido Curioso
  • 57. O Rei dos Ladrões
  • 58. O Burro Falante
  • 59. O Irmão Rico e o Irmão Pobre
  • 60. O João Toleirão
  • 61. O Fode-Tudo
  • 62. É Porco ou Porca?
  • 63. O Carro da Lenha Mais Torta que Há
  • 64. Puputiriru
  • 65. Sotavento e Barlavento
  • 66. A Enxada
  • 67. O João Grilo
  • 68. O Santo desta Cidade
  • 69. Os Três Pretendentes
  • 70. O Acordeão
  • 71. O Rapaz Malcriado
  • CONTO FORMULÍSTICO / FORMULA TALE
  • 72. As Doze Palavras Ditas e Retornadas
  • POR CLASSIFICAR / UNCLASSFIED
  • 73. A Menina da Cruz Vermelha
  • 74. A Porca Quer Porco?
  • 75. D. Sebastião
  • 76. O Náufrago
  • 77. O Rapaz que Caiu na Cisterna
  • 78. Os Bois Trocados
  • 79. A Promessa do Imigrante
  • 80. A Doença do Senhor Silveira
  • OUTROS INFORMANTES: CONTOS / OTHER INFORMANTS: FOLKTALES
  • 81. A Noiva Preguiçosa
  • 82. A Mulher que Fingia não Comer
  • 83. O Chapéu Novo
  • 84. O Corno à Porta
  • 85. Os Figos dos Defuntos
  • 86. As Orelhas do Senhor Padre
  • 87. A Confissão do Sacristão
  • 88. O Cheiro da Linguiça
  • 89. Os Filhos do Senhor Padre
  • 90. As Favas do Senhor Padre
  • OUTROS INFORMANTES: POR CLASSIFICAR / OTHER INFORMANTS: UNCLASSIFIED
  • 91. O Trabalho Abre o Apetite
  • 92. A Rapariga Castigada por Causa do Pai
  • 93. Santo António e os Passarinhos
  • 94. Os Bois do Ilhéu
  • Vocabulário / vocabulary
  • Motivos / motifs
  • Tipos / tale types

PREFÁCIO

Esta é a terceira de três colecções de contos populares gravados entre imigrantes portugueses da América do Norte – Califórnia1, Canadá2 e Massachusetts. Recolhida em 1978, foi transcrita graças a uma bolsa da John Simon Guggenheim Memorial Foundation (de Junho de 1984 a Maio de 1985). A colecção da Califórnia, com 91 contos, foi ditada por 26 informantes. A do Canadá, com 28 informantes, inclui 169 contos. Ao contrário destas duas colecções, a de Massachusetts foi quase toda gravada por um florentino de memória extraordinária, o septuagenário Guilherme Alexandre da Silveira. Contribuiu nada menos do que 72 contos com classificação internacional, e mais oito histórias sem classificação. Os outros cinco informantes gravaram 14 textos.

Devemos a foto do Sr. Silveira a Maria Assunção Gil Correia de Melo, Directora do Centro de Conhecimento dos Açores, Secretaria Regional da Cultura. Quando não conseguiu encontrar nenhuma foto dele no espólio de Joanne Purcell3 – tinha-o entrevistado em 1969 – contactou Luis Filipe Vieira, director do Museu das Flores, e ele enviou-lhe várias. Os nossos agradecimentos aos dois.

Paulo Jorge Correia encarregou-se da classificação internacional segundo o magnífico catálogo de Hans-Jörg Uther4, incluindo também paralelos lusófonos, hispânicos e sefarditas, e corrigiu o meu ferrugento português. Natacha Fontes-Merz fez o mesmo com os resumos em inglês. Ramiro Fontes resolveu vários problemas técnicos com o manuscrito. Francisco Cota Fagundes leu a introdução, e incorporei as suas sugestões. Apesar de estar jubilado, o departamento de empréstimos inter-bibliotecários da Kent State University continuou a prestar-me os seus serviços indispensáveis.

Não quero deixar de lembrar dois falecidos amigos, Samuel G. Armistead e Joseph H. Silverman. Devo-lhes muito, dado que inspiraram e animaram todas as recolhas de contos e de romances que levei a cabo através da minha carreira.

Minha esposa, Maria-João, acompanhou-me nesta e nas outras recolhas. Como sempre, meus pais, João e Filomena Fontes, e minha esposa, ajudaram com as transcrições, escutando as fitas comigo quando eu tinha dúvidas. Sandra Mónica Olim digitalizou os textos originalmente copiados com uma máquina de escrever.

Irene Maria F. Blayer e Dulce Maria Scott tiveram a gentileza de acolher esta obra na série Interdisciplinary Studies in Diasporas, que co-dirigem para a editorial académica Peter Lang.

Finalmente, os meus agradecimentos a todos os informantes, e muito especialmente ao Senhor Guilherme Alexandre da Silveira, um dos grandes contadores açorianos, pela paciência de passar horas e horas a gravar o seu riquíssimo repertório. Via-se logo que era uma pessoa boa, alegre e generosa. Tinha muito jeito para contar os contos e era um prazer escutá-lo. Este livro vai dedicado à sua memória.


1 Fontes, Contos Populares Portugueses da Califórnia (no prelo).

2 Fontes, Contos Populares Portugueses do Canadá. Interdisciplinary Studies in Diasporas, 15. New York: Peter Lang, 2022.

3 http://www.culturacores.azores.gov.pt/joanne-purcell/vida-e-obra.aspx.

4 The Types of International Folktales. A Classification and Bibliography, 3 vols., Folklore Fellows Communications 284–286, Helsinki: Academia Scientiarum Fennica, 2004 (=ATU).

INTRODUÇÃO

I.  OS PORTUGUESES NA NOVA INGLATERRA1

Nos séculos XVIII, XIX, e princípios do século XX, a caça da baleia era uma indústria muito importante na Costa Leste dos Estados Unidos. Os centros principais eram New Bedford, Nantucket e Provincetown, no estado de Massachusetts. Como as viagens podiam levar de dois a três anos e se tratava de um trabalho árduo e perigoso que muita gente não queria fazer, os capitães tinham dificuldade em recrutar tripulantes americanos. Por esse motivo, quando paravam nos Açores e em Cabo Verde para obter provisões, viam-se obrigados a recrutar nos dois arquipélagos. Foi assim que começou a imigração portuguesa para os Estados Unidos2. Os recém-chegados radicavam-se nas cidades baleeiras onde aportavam, fundando assim as primeiras colónias portuguesas da Nova Inglaterra.

Como os centros principais da pesca da baleia nos Açores eram o Pico e o Faial, e o porto da Horta era o melhor da época, era para lá que os baleeiros americanos se dirigiam3. Recrutavam tripulantes em várias ilhas, mas os faialenses deviam constituir a maioria; o primeiro bairro português de New Bedford foi baptizado com o nome de “Fayal”4. Em Cabo Verde, cujos habitantes também tinham cidadania portuguesa, os americanos faziam escala principalmente na ilha de Brava. Por essa razão, os que se radicaram na Nova Inglaterra ficaram sendo conhecidos com o nome de “Bravas”5.

Os novos tripulantes alistavam-se em busca de melhores condições de vida, para fugir à tropa, e também por espírito de aventura. O número de portugueses começou a aumentar a partir de 1820. Para fins do século XIX já constituíam a maioria das tripulações6. Forneceram um grande número de capitães7, e acabaram por tomar conta da indústria.

Quando se descobriu ouro na Califórnia em 1848, muitos dos portugueses que se encontravam nos navios baleeiros ancorados na baía de S. Francisco decidiram desertar a fim de tentar a sorte8. Outros, já radicados na Nova Inglaterra, também decidiram participar na corrida ao ouro. Foi assim que começou a comunidade portuguesa daquele estado.

De 1860 a 1870 entraram 2.658 portugueses nos Estados Unidos. Na década seguinte chegaram mais 14.0829. O governo americano impôs restrições em 1917, decretando que só se iria permitir a entrada de emigrantes que soubessem ler e escrever. Este requisito afectou os portugueses mais do que as outras nacionalidades, devido ao alto grau de analfabetismo que existia em Portugal nessa época10. Em 1924 estabeleceram-se quotas anuais para cada país, tomando como base a percentagem de indivíduos da mesma nacionalidade radicados nos Estados Unidos antes de 1920. Como explica Caetano Valadão Serpa, “estas normas desfavoreciam a imigração do Sudoeste da Europa, dado que nesta data eram relativamente poucos os imigrantes provenientes destas regiões em comparação com os de origem inglesa, irlandesa e alemã. Estes ficaram a beneficiar duma percentagem de 70% das quotas. Os portugueses ficavam limitados a cerca de 500 por ano”11. Não queriam portugueses, espanhóis, italianos, gregos e gente do Leste da Europa. O objectivo era preservar o carácter nórdico, protestante do país, e excluir católicos. Nas páginas que se seguem, enfatizamos a situação nas décadas de 60, 70 e 80, ou seja, por volta do período em que levámos a cabo a recolha para este livro (1978).

O número de portugueses foi aumentado por decretos do congresso americano em 1958 e 1960 (Azorean Refugee Acts), numa reacção à tragédia que assolou a freguesia dos Capelinhos (Faial) em Setembro de 1957. Esta legislação permitiu a entrada de 4.811 açorianos12. Em 1965 acabaram-se as velhas restrições, permitindo-se a entrada de parentes próximos de pessoas radicadas no país. Os efeitos foram especialmente importantes para os Açores. Nas palavras de Caetano Valadão Serpa, esta legislação deu lugar a um êxodo: “Em 1965 emigraram 3.687 pessoas e logo em 1966 saltava-se vertiginosamente para 10.707. […] Este surto frenético culminava em 1969 com 13.125, o que equivale a 1.000 pessoas por mês”13. Valadão Serpa também explica que, dos portugueses que entrevistara em Cambridge, cerca de 20% dos que tinham vindo nos últimos anos atribuíam a causa à guerra do Ultramar14.

Em 1920 havia um total de 106.000 portugueses nos Estados Unidos; segundo o recenseamento de 1940, esse número tinha subido para 176.407, 62.347 dos quais tinham nascido no estrangeiro15. Em 1974, quatro anos antes de começarmos a nossa pesquisa, Francis M. Rogers calculava que o número de pessoas nascidas em território português montava a 318.45816. O quadro complicava-se quando se tratava de ter em linha de conta aqueles que, apesar de terem nascido nos Estados Unidos, ainda se consideravam portugueses. Na opinião de Rogers não passavam de um milhão17. Seja como for, era difícil calcular o número total devido a factores como a americanização e o casamento com outros grupos étnicos18.

A maior parte concentrava-se na Nova Inglaterra, região formada pelos estados de New Hampshire, Vermont, Maine, Massachusetts, Rhode Island e Connecticut. Segundo um relatório feito pelo cônsul de Boston em 1923, a maioria encontrava-se em Massachusetts e em Rhode Island, com Connecticut em terceiro lugar19. Mais recentemente, o censo de 2010 indicava que havia 1.334.145 pessoas de origem portuguesa nos Estados Unidos; baseando-se nesse censo, em 2018 calculava-se que 281.615 se encontravam em Massachusetts, 97.400 em Rhode Island, e 307.507 na Califórnia20.

No primeiro quartel do século XX, cerca de 20% regressava à terra natal. Num período de dez anos, de 1909 a 1919, houve um total de 19.841 regressos21. Era comum emigrar para o Estados Unidos a fim de ganhar o dinheiro necessário para voltar em poucos anos, comprar terra e, nalguns casos, um barco suficientemente bom para que o bem-estar da família ficasse devidamente assegurado22. Muitos também regressaram devido à Grande Depressão que começara em 1929. Contudo, isso já não acontecia nas décadas 60 e de 70. Como notou John B. Jensen a princípios dos anos 70, o número daqueles que tinham regressado em anos recentes era muito pequeno, variando entre um máximo de 124 e um mínimo de 15 por ano23.

Pouco tardou para que os ex-baleeiros se dedicassem a outros tipos de pesca, incluindo a do bacalhau, com grande sucesso. Em 1877, nove das quarenta e oito unidades que saíram de Provincetown, Massachusetts, a caminho dos Grandes Bancos, eram comandadas por portugueses24. Oito anos depois, esse número tinha aumentado consideravelmente: “Em 1885 partiram de Provincetown sessenta navios bacalhoeiros dos bancos da Terra Nova, e por essa altura quase todos os capitães eram portugueses”25. Com os anos, muitos deles passaram a proprietários, investindo as suas grandes fortunas em outras indústrias26.

Na década de 1880, encontramos cerca de 200 portugueses em pequenas quintas ao redor de New Bedford. Iam-nas comprando pouco a pouco27. Depois de 1900, também havia alguns com pequenas propriedades em Cape Cod, Massachusetts, e em Rhode Island, onde cultivavam batatas e outros legumes para consumo local28. Eram excelentes agricultores. Segundo um velho ditado da Nova Inglaterra, “quem quiser ver uma batata crescer deve-lhe falar em português”29.

A partir dos últimos anos do século XIX e começos do século XX, a maioria dos recém-chegados encontrava trabalho em várias indústrias, com ênfase na de têxteis: “Assim, as fábricas de algodão de New Bedford e Fall River atraíram nova onda de imigrantes dos Açores, sobretudo de São Miguel e de Santa Maria”30. O movimento para o interior remonta a este período: “À medida que a indústria têxtil se foi estendendo a outras vilas e cidades da Nova Inglaterra os imigrantes foram-se dispersando e agrupando por famílias, conterrâneos e conhecidos, que ao emigrar se lhes juntavam”31. Muitos radicaram-se em Fall River porque, de 1880 a 1920, essa cidade se transformou no maior centro da indústria têxtil em todo o país32. Na década de 1920, a maioria já estava empregada nessa indústria em condições pouco desejáveis, o que, aliás, representava a regra geral. Nos anos 70, essas fábricas e a indústria ligeira constituíam o destino de quase todos os novos emigrantes portugueses33. Infelizmente, a indústria de têxteis da Nova Inglaterra sofreu as consequências do desenvolvimento desta actividade nos estados do sul do país, para onde muitas fábricas se mudaram, e da competição estrangeira. Ao visitar a maior das que ainda restavam em Fall River em 1975, Louis Mazzatenta notava que perto de metade dos 1.200 empregados eram portugueses, e que “manuais da companhia, boletins informativos e avisos de segurança são impressos em inglês e em português”34. Como o sudeste da Nova Inglaterra tinha uma das percentagens de desemprego mais elevadas dos Estados Unidos35, os portugueses que se tinham estabelecido na zona anos atrás aceitavam mal a vaga de novos imigrantes chegados a partir dos anos 60. Chamavam-lhes “greenhorns”36, e tinham medo que eles lhes tirassem os empregos37.

Os recém-chegados, como é quase sempre o caso, tinham que se enfrentar com dificuldades. Ao estudar o que se tinha passado em Cambridge, Massachusetts, Caetano Valadão Serpa verificou que “em 1969 o desemprego entre os portugueses era de 14,4%, enquanto na cidade, como um todo, era apenas de 8,3%”38. Explica que isso se devia à inflação, à baixa escolaridade, à barreira linguística, e que esses portugueses tratavam de resolver o problema “tomando qualquer ocupação disponível; trabalhando horas extraordinárias sem conta; não se negando a duas ocupações diárias. Pouco tempo lhes resta[va] para comer e dormir”39. Contudo, não gostavam de recorrer à assistência, a qual, na sua maneira de ver, era “praticamente algo destinado aos miseráveis e inúteis que vegetam a expensas da fazenda pública”40.

Como tinham vindo para a América para ganhar dinheiro, todos os que podiam trabalhavam, incluindo as mulheres, e era “frequente os filhos não completarem o curso liceal grátis para principiarem a ganhar dinheiro”41. Este desprezo pela escola era responsável pelo facto de os portugueses não se acharem representados nas profissões liberais nas proporções que o seu número justificaria. Como a escola secundária era obrigatória só até aos 16 anos, era comum ver os filhos dos emigrantes desistirem com essa idade em vez de continuarem até aos 18, para terminarem este grau de ensino. Encorajados pelos pais, preferiam o dinheiro. A atitude de António Cardoso era bastante comum: “Gosto de trabalhar. Prefiro trabalhar a estar na escola. A escola é um enfado; dorme-se. Quando se trabalha, está-se a mexer. Conheço muita gente que não gosta de trabalhar. Talvez não precisem do dinheiro. Ficam sentados a estudar problemas ou coisas parecidas”42. Como a emigração provinha essencialmente de zonas rurais, onde os estudos pouco importavam, essa maneira de ver o mundo perpetuava-se ao chegar à América, limitando os jovens “aos trabalhos menos rendosos, menos qualificados e mais sujeitos a qualquer crise de desemprego”43.

Além da falta de encorajamento familiar, os alunos recém-chegados sentiam-se constrangidos na escola por outras razões. Como não sabiam a língua, não podiam competir com os outros estudantes e queriam desistir quanto antes. Os programas de ESL (English as a Second Language) desenvolvidos pelas escolas a partir de 1968 para os que tinham pouco conhecimento do inglês vieram ajudá-los um pouco44. Os programas bilíngues também prestaram serviços importantes. Nesses programas, os alunos aprendiam a ler e a escrever na língua nativa à medida que iam aprendendo o Inglês. Em Massachusetts, os programas eram obrigatórios em todas as cidades onde houvesse mais de vinte crianças que falassem a mesma língua estrangeira. Só nesse estado, em 1973–1974 havia programas bilíngues para imigrantes portugueses em nada menos do que dezoito cidades. Durante o ano académico de 1973–1974, a de Cambridge oferecia programas de francês, grego, português e espanhol45. Em 1975 havia mais de 420 alunos portugueses matriculados. O programa bilíngue de Cambridge provou logo o seu valor. Em 1973, 70% dos alunos saíam da escola aos 16 anos; dois anos depois, a percentagem de desistências tinha-se reduzido para 50%46.

A criação dos programas bilíngues deve-se ao despertar dos grupos étnicos. Antes de 1970, a escola constituía um instrumento de americanização apressada e, por conseguinte, dolorosa. Esperava-se que os alunos abandonassem imediatamente as línguas e culturas pátrias, substituindo-as pela língua e cultura do país adoptivo47. Depois de 1970, os americanos de origem estrangeira deram-se conta de que o famoso crisol americano constituía um mito, e começaram a valorizar a cultura dos seus antepassados e a reclamar os seus direitos.

Devido em parte à falta de educação formal dos imigrantes chegados antes de 196548, a comunidade portuguesa não se encontrava representada como merecia na política americana. Outro factor importante era a desunião que caracterizava a colónia. Os portugueses dividiam-se segundo a região de origem. Açorianos, continentais, madeirenses e cabo-verdianos49 tendiam a agrupar-se e a fundar os seus próprios clubes. Era só ao chegar à Nova Inglaterra que se conheciam. Os açorianos, por sua vez, poder-se-iam dividir em nove grupos, um para cada ilha. Em Fall River e em New Bedford, os quarteirões residenciais eram frequentemente compostos de açorianos da mesma ilha, e às vezes da mesma freguesia50. Outro factor de divisão foi o início da chamada segunda vaga depois de 1965, graças à abolição das quotas discriminatórias estabelecidas em 1924. Portugal tinha mudado, e o nível educacional dos novos emigrantes, embora a maioria só tivesse a 3a ou 4a classe, era muito superior ao analfabetismo que prevalecia antes. A sua atitude ante o ambiente que tinham de enfrentar também era completamente diferente. Conscientes do valor da história e cultura da pátria de origem, rejeitaram a americanização apressada e identificaram-se logo com o movimento étnico, proclamando com orgulho o seu portuguesismo. Onésimo Almeida descreveu o conflito da seguinte maneira: “E depois os lusalandos [luso-americanos] não são homogéneos. E têm diuturnidades. Os recém-chegados-aprendizes-de-lusalandos são iniciados nos ritos e sacramentais da nova civilização por aqueles que primeiro demandaram estas paragens. Há fricções, porque nem tudo foi imutável além-Atlântico e muitos dos que já cá estavam ainda seguem os padrões dos figurinos da América dos anos quarenta”51.

Os antigos imigrantes tinham tratado de se americanizar e assimilar o mais depressa possível52, caladamente, sem chamar atenção, transformando-se assim na “minoria invisível” de M. Estellie Smith53. Logo que chegavam, alguns permitiam que os funcionários dos serviços de imigração lhes adaptassem os nomes a equivalentes fonéticos em inglês, mas outros traduziam-nos depois, a fim de evitar a discriminação. Essa praga existia contra os portugueses, os italianos e outros imigrantes do sul da Europa. Os irlandeses também não escapavam.54 O ex-cônsul de Boston Eduardo de Carvalho dá exemplos de “Perrys” que eram Pereiras, de “Burgess” que eram Borges, de “Brooks” e “Rivers” que eram Ribeiros, de “Marshalls” que eram Machados, de Rosas que preferiam chamar-se “Roses”55, e indigna-se quando os sobrinhos do Tio Sam lhe estropiam o nome, chamando-lhe “Mister Cavalo”56. Em 1928 Maud Cuney Hare observava que, infelizmente, os filhos dos emigrantes de Provincetown nem se esforçavam por aprender a língua dos pais57. De facto, até havia quem não quisesse que os filhos falassem português, pensando que assim ficariam mais “americanos”.

Com a chegada dos novos imigrantes, a comunidade portuguesa, que já se encontrava tão dividida, ficou separada em dois novos grupos: um que preconizava a assimilação rápida, outro que lutava pela perpetuação da língua e valores culturais trazidos da mãe-pátria58. Aos conflitos que dividiam a comunidade, havia que agregar a falta de preparação política trazida de Portugal. Tudo isto ajuda a explicar porque é que, numa cidade como New Bedford, onde os portugueses possuíam pelo menos 50% dos votos, os candidatos luso- americanos eram geralmente derrotados pelos irlandeses59.

Naturalmente, como em todas as comunidades imigrantes, o português sofreu influências da língua da nação americana60. Em 1892, Henry R. Lang já notava que a língua dos portugueses admitia uma percentagem cada vez maior de anglicismos61. Apesar de já antigo, o livro do Professor Leo Pap mantém a sua importância62. Adalino Cabral, um micaelense radicado em Massachusetts, cunhou a palavra “portinglês” para o fenómeno63.

As pessoas guardam a comida na “friza” (frigorífico; do ing. ‘fridge’, abrev. de ‘refrigerator’), “derraivam” (guiam; do ing. ‘drive’) para “o tão” (cidade; do ing. ‘town’), fazem compras nas “estoas” (lojas ou mercearias; do ing. ‘store’), etc. Nos anos 70, era possível ver anúncios como “Agente falemos Português”, ou uma ementa com “chorico corisço”64. O estado de Massachusetts esteve prestes a publicar a seguinte tradução sobre o exercício do voto: “Se por sua vontade sem autoridade da lei fazer mal, demorar ou interferir com, ou auxiliar em fazer mal, demorando-se ou interferir com o votante em ir para as primárias eleições, enquanto no lugar de votar, enquanto marca o seu voto, ou esforçar um votante enquanto vota ou depois de votar, ou depois de depositar o seu voto como vai votar ou como votou, será multado pelo menos de 500 dól. ou será preso por menos de um ano”65.

Tal como hoje em dia, a Igreja Católica continuava a desempenhar um papel de grande importância nos anos 70. Nas chamadas “paróquias nacionais”, os serviços religiosos eram celebrados em português. Fundada em 1869, a mais antiga é a de S. João Baptista, em New Bedford. Havia mais duas paróquias portuguesas nessa cidade. Em Fall River, a paróquia de Santo Cristo (1876) era a mais antiga de sete. Além de New Bedford e de Fall River, Massachusetts tinha paróquias portuguesas em Boston, Gloucester, Lowell, Cambridge, Taunton, Lawrence, East Falmouth, Somerset e Ludlow66. Naturalmente, procuravam padres portugueses. O primeiro chegou a New Bedford em 186767, dois anos antes da fundação da primeira paróquia portuguesa daquela cidade.

As festas religiosas trazidas pelos primeiros imigrantes nunca deixaram de ser celebradas. Todos os açorianos organizavam, como ainda organizam, grandes festas em honra do Senhor Espírito Santo – em anos recentes, nada menos do que 290 nos Estados Unidos e no Canadá68. Os micaelenses mantinham viva a devoção ao Senhor Santo Cristo e ao Senhor da Pedra, e os madeirenses não se esqueciam de Nossa Senhora do Monte. Havia – e continua a haver – um grande número de clubes de recreio, instituições beneficentes e outras sociedades comunitárias, incluindo grupos folclóricos e equipas de futebol, e ainda se juntam para celebrar o Dia de Portugal com desfiles e outras actividades todos os anos69.

Os imigrantes lançaram numerosos programas de rádio e alguns programas de televisão os quais, como indica Frank F. Sousa, ainda estão por estudar70. Não se pode dizer o mesmo dos jornais, aos quais Alberto Pena Rodríguez dedicou um esplêndido estudo71. O primeiro foi o Jornal de Notícias, criado por um ex-baleeiro das Flores, João Maria Vicente, em Erie, Pensilvânia, em 1877. Entre essa data e os nossos dias, houve nada menos do que 167 jornais portugueses nos Estados Unidos72. Eram semanários na sua maioria, mas alguns só se publicavam uma vez por mês. Em New Bedford houve um total de 38 jornais73. Presentemente, existem apenas cinco em todo o país: dois em New Jersey, dois em Massachusetts, e um na Califórnia. Os de Massachusetts são The Portuguese Times (New Bedford)74 e O Jornal (Fall River)75.

*

Hoje em dia, os luso-americanos representam uma boa percentagem da população de várias cidades de Massachusetts: 43,9% em Fall River, 37,23% em North Dartmouth, 36,062% em New Bedford, ultrapassando os 20% em nada menos do que mais catorze cidades76. Em Rhode Island, são 40,86% em East Providence, 31,4% em Bristol, e passam de 20% em mais duas cidades77. Na cidade de Taunton, onde entrevistámos os informantes para este livro, 24.22% dos habitantes que tinha em 2010 eram de origem portuguesa78.

Como vimos, o nível de educação dos luso-americanos costumava ser muito baixo, e a falta de qualificações limitava-os aos trabalhos mais humildes e mal remunerados. Os pais transmitiam a sua falta de interesse nos estudos aos filhos79, os quais, recordamos, desistiam da escola logo que a lei permitia, com dezasseis anos. Ao contrário dos portugueses da Califórnia80, os quais compravam terra e prosperavam em zonas rurais, os da Nova Inglaterra viviam conglomerados em zonas urbanas, em bairros perto uns dos outros, sem grandes oportunidades para avançar. Ao passo que outros imigrantes europeus estudavam e começavam a entrar nas profissões, os portugueses pouco progrediam. Embora houvesse quem pensasse bem deles81, também não faltava quem notasse o seu atraso e o lugar que ocupavam na escala social.

A situação mudou consideravelmente nos últimos anos. Há maior visibilidade da cultura portuguesa graças a programas de português em universidades como a Brown, a Universidade de Massachusetts em Amherst, em North Dartmouth, e o Saab Center for Portuguese Studies, em Lowell. Amherst, North Darmouth, Brown e Harvard oferecem um doutoramento. Entre as editoras, temos a Tagus Press82 e a Gávea-Brown83. A Brown University, além de publicar vários livros, edita nada menos do que cinco revistas dedicadas à literatura, cultura e história luso-brasileiras84. Alguns escritores de ascendência portuguesa alcançaram proeminência a nível nacional, e surgiu uma literatura luso-americana85.

O nível educativo da comunidade melhorou consideravelmente. Muitos filhos de portugueses adquiriram formação universitária. Alcançaram uma ascensão social bastante superior à dos pais e avós, passando a residir em zonas mais prósperas, nos subúrbios. Aparecem cada vez mais portugueses nas universidades, e o rendimento médio das famílias luso-americanas é agora superior à média nacional86. Como muitos americanos da classe média, alguns aposentam-se na Florida a fim de fugir aos invernos da Nova Inglaterra.87

Em suma, os portugueses e os seus descendentes estão cada vez mais presentes na vida social, económica, política88 e cultural da nação. Por outro lado, também é certo que a ascensão social e o grande aumento de casamentos mistos fazem com que muitos saiam do seio da comunidade e fiquem menos portugueses.

Seja como for, os luso-americanos orgulham-se do seu portuguesismo, e não querem perder a sua identidade. Onésimo T. Almeida cunhou o termo “L(USA)lândia” para designar a comunidade, que vê acertadamente como uma décima ilha “cercada de América por todos os lados. Povoada em especial por açorianos, era (e continua ainda em grande parte a ser) a décima ilha do arquipélago dos Açores”89. O modo sucinto como este escritor caracteriza a comunidade capta perfeitamente bem a sua maneira de viver:

As quatro décadas que se seguiram à vaga migratória subsequente ao vulcão dos Capelinhos testemunharam um imenso crescimento da L(USA)lândia; os seus arredores estão cheios de vida e não é necessário falar inglês para sobreviver. É possível comer em diversos restaurantes portugueses; comprar em padarias portuguesas, mercados, lojas de mobiliário e stands de automóveis; todos os fins-de-semana se pode ir a eventos nas associações portuguesas; preencher o calendário de um ano completo com festas de todos os tipos; participar em missas celebradas em português, em igrejas portuguesas; envolver-se em organizações sociais; assistir a concertos de artistas portugueses; ver televisão e ler jornais portugueses, tanto locais quanto de Lisboa, ou dos Açores; ir assistir a jogos de futebol de equipas portuguesas locais; consultar um médico português; ir a lojas, hospitais e gabinetes governamentais, polícia incluída, onde é possível ser atendido por funcionários ou empregados falantes de português. A vida das ilhas foi recriada com dinamismo e elasticidade; entusiasmo, saudade e cooperação, e com milhares de horas de trabalho voluntário oferecidas às associações ou à Igreja90.

Deus permita que assim seja por muito tempo. Alguns destes portugueses visitam o seu torrão natal praticamente todos os anos. Os seus descendentes também lá vão de vez em quando, e ficam sempre encantados com a terra dos seus antepassados. Estes luso-americanos contribuíram para o desenvolvimento dos Estados Unidos com o seu trabalho, e a preservação dos laços que os unem com Portugal continuarão a enriquecer os dois países.

II.  OS CONTOS

Em Janeiro e Fevereiro de 1978 desloquei-me à Nova Inglaterra em companhia de minha esposa, Maria João, com o propósito de fazer uma recolha de romances entre os imigrantes portugueses91. Alojei-me em casa de José Machado Fontes, um tio de São Jorge que morava em Taunton, Massachusetts e, apesar dum grande nevão que tornou as ruas e as estradas intransitáveis por alguns dias – até foi preciso desenterrar o carro – conseguimos reunir uma colecção de 320 versões, consistindo de romances tradicionais e de um bom número de orações e outros textos em verso.

Os 79 informantes entrevistados residiam nas cidades de Bristol, Cranston, Cumberland, East Providence, Pawtucket, Providence e West Warwick, no estado de Rhode Island, e de Acushnet, Cambridge, New Bedford, Peabody, Stoughton e Taunton, em Massachusetts92.

Por outro lado, os contos foram todos recolhidos em Taunton. Quando não se podia viajar para outras cidades por causa do nevão, tivemos a sorte de descobrir o Sr. Guilherme Alexandre da Silveira, cuja casa não ficava longe da de meu tio. Embora não estivesse a pensar em formar uma colecção de contos, teria sido um desperdício deixar passar a oportunidade de entrevistar um informante como ele. Tinha uma memória extraordinária, e o seu repertório representa a maior parte desta colecção (nos 1–80). Os outros quatro informantes entrevistados, naturais das ilhas de Santa Maria, São Jorge e São Miguel, gravaram dez anedotas e quatro textos sem classificação (81–94).

Natural da Fazenda de Santa Cruz, ilha das Flores, o Sr. Silveira ia cumprir 71 anos de idade no dia 1 de Fevereiro e, dois dias depois, ele e a sua esposa estavam para celebrar as suas bodas de ouro. Casara e mudara-se para a freguesia da mulher, os Cedros, quando tinha 21 anos. A filha e os dois filhos do casal residiam na mesma rua, em Taunton. De facto, havia muita gente das Flores naquela cidade. Em 2010, recordamos, 24,22% dos seus 49.433 habitantes eram de origem portuguesa93.

O Sr. Silveira morava com a filha, a qual tinha uma menina. A mulher ficava com um dos filhos, para tomar conta das suas três crianças enquanto ele e a esposa iam trabalhar. Tanto a filha como as duas noras do casal trabalhavam na vizinha cidade de Stougthon, em fábricas. Os filhos também estavam empregados em fábricas.

Não eram os primeiros imigrantes da família. O avô paterno do Sr. Silveira, natural do Pico, tinha-se casado no Sul de New Bedford mas, como muitos outros, regressara aos Açores devido à Grande Depressão que tinha começado em 1929. Foi residir para as Flores porque a mulher era de lá. Nos Estados Unidos tinham ficado um tio e uma tia do Sr. Silveira, ambos naturais do Sul de New Bedford. Segundo ele, essa tia não se tirava da igreja: “Era mui beata!”

Por sua parte, o Sr. Silveira estava em Taunton há cinco anos. Fora originalmente para a Califórnia, chamado por um filho cuja sogra tinha “papeles americanos”94, mas mudara-se para Massachusetts sete meses depois. O frio da água de lavar as vacas na “leitaria” (granja de lacticínios) onde trabalhava tinha-lhe causado reumatismo nos braços. Sentia-se melhor em Massachusetts, onde se tinha empregado numa fábrica. Voltara às Flores por umas três semanas no Verão anterior, mas não tinha gostado: “Já nã m’amanhei lá”.

Embora o pai e quase todos os irmãos soubessem ler, o Sr. Silveira não tinha aprendido apesar de ainda ter frequentado a escola: “Era a minha cabeça”, explicou. Só sabia assinar o nome. Gostava de música, e tinha aprendido a tocar acordeão. Escapara à tropa graças ao pai, que era amigo do Governador Civil, o Dr. Neves, faialense, o qual ficava em sua casa quando vinha às Flores.

Trabalhava como serrador quando era rapaz, e tinha começado a pescar desde criança. O pai tinha duas “embarcaçães” e, quando se casou, deu-lhe um barco e um boi. Embora gostasse de pescar, era lavrador; dedicou-se sobretudo à agricultura. Nos Cedros, foi comprando terra pouco a pouco, até chegar ao ponto de lhe produzir praticamente tudo o que precisava para casa.

Tinha aprendido os contos sobretudo na Fazenda, quando era rapazinho, com os “velhos antigos” que os contavam nas desfolhadas, quando as pessoas se juntavam para ajudar a amarrar milho, em serões de inverno, quando as mulheres cardavam e fiavam lã, e noutras ocasiões. Também ouvia cantar os velhos romances ou “trovas”, como lhes chamam nas Flores, mas não se importava: “Nunca liguei”. Preferia contos: “A gente parece qu’está vendo aquelas pessoas fazer aquilo”. Só tinha ouvido ler dois: João de Calais (ATU 505; não chegou a contá-lo) e As Doze Palavras Ditas e Retornadas (n° 72). Ele próprio começou a contar quando apanhava milho e tinha a casa cheia de gente.

Quando se deslocava à Ponta Ruiva para pescar, as pessoas juntavam-se para ouvi-lo, e havia um que até lhe dava peixe. O Sr. Padre Caetano Tomás – foi meu professor de inglês no Liceu de Angra – pediu-lhe que lhe dissesse a história do Ladrão Gaião (nº 36), porque queria adaptá-la para um sermão. Às vezes contava contos aos filhos para eles dormirem. Quando cresceram também lhos pediam, mas não os aprenderam. Na sua opinião, os velhos antigos é que os sabiam: “esta gente nova nã sabe”.

O Sr. Silveira foi o terceiro dos grandes contadores mencionados pela malograda Joanne Burlingame Purcell (1938–1984) nos Açores95. O primeiro, o baleeiro José Fernandes da Costa, “o Garajau”, gravou contos por oito noites seguidas na freguesia de São Mateus (Terceira)96. Em Santa Maria, o segundo, José Inácio Resendes ou “José do Alto”, gravou 82 contos em Santa Bárbara; a autora explica que “era muito procurado para entreter durante os serões, esfolhadas e outras fainas de carácter colectivo”97. O terceiro informante, o nosso Sr. Silveira, “contribuiu com 37 contos narrados num total de 34 horas distribuídas em cinco dias de entrevista. Tal como o ‘Garajau’ e o ‘José do Alto’, o senhor Silveira é um verdadeiro contista [sic], com um repertório aparentemente inesgotável. No último dia que estive nas Flores gravou contos por doze horas, parando somente durante as refeições. E quando à uma da manhã eu arrumava os microfones e gravadores para tomar o barco que saía para o Faial dentro de uma hora, ele insistia em contar ainda mais um dos seus contos!”98

Joanne Purcell continua: “Embora o conto popular seja um passatempo favorito dos pescadores das Flores99, não encontrei ninguém nessa ilha que soubesse tantos contos como ele. Além disso, tinha uma maneira de contar que fazia com que os ouvintes ficassem ‘de boca aberta’ e com ‘os olhos arregalados’, como se acreditassem [em] tudo. Pelo que consegui apurar, estes grandes contistas [sic], que eram analfabetos, tinham aprendido as suas histórias com pessoas que também não sabiam ler nem escrever”100.

Não há dúvida de que essas pessoas gozavam de grande prestígio nas suas respectivas freguesias. Eram muito procurados nos tempos em que o conto popular continuava a ser uma forma importante de entretenimento, por ainda não haver rádio ou televisão, para não dizer nada de tablets e telemóveis. Tinham grande orgulho nos seus repertórios, mas era preciso ter ouvintes para evitar o esquecimento e manter viva a tradição. Em Taunton, o filho mais novo do Sr. Silveira pedia-lhe por vezes uma “historiazinha” quando estavam à mesa, mas quase se tinha deixado de contar. Embora as crianças costumem gostar muito de contos, os netos não se importavam. A língua principal deles era o Inglês.

Como as ocasiões de contar eram raras, o Sr. Silveira começava a ficar um pouco esquecido, e sabia-o perfeitamente bem: “Qu’ê já ná sei este conto” (nº 21); “Eu agora ‘tou aqui caldeado” (43); “E ê nã sei mais nada já. Mas ê já soube mais disto” (54). Fez um grande esforço para se lembrar dos versos em que um criado honesto, incapaz de mentir, confessa ao patrão que tinha matado o boi arraiado para obter os favores duma rapariga bonita (46) mas, embora não os conseguisse recordar, acabou por dar uma boa ideia do conto. Pode-se dizer o mesmo de outros casos em que se nota alguma confusão101. Mesmo assim, os seus contos são todos relativamente completos.

As gravações, que demoraram vários dias, foram feitas sobretudo em sua casa, mas ele também gravou alguns contos em casa do meu tio José Machado Fontes, onde a Maria-João e eu nos tínhamos alojado. Orgulhava-se muito do seu repertório e, quando acabava um conto, ria-se e dizia frequentemente: “E quem no disse está aqui e quem quisé sabê melhó vaia lá”.

Embora o propósito principal dos contos seja o entretenimento, muitos também servem ou se adaptam para ensinar. Na presente colecção, as lições de moral, quando existem, são sobretudo de carácter implícito, mas há algumas excepções. No 17. O Rapaz que Foi ao Inferno Buscar o Cabelo do Diabo, um rei vê pelos astros que um pobre moço nascido na mesma hora que a sua filha estava destinado a casar com ela, e decide que isso não vai acontecer: “Aqui na terra, Deus não é que manda. Sou eu”. Contudo, a rapariga casa-se com o rapaz, e o rei é castigado: “O que Deus destinar é qu’é feito. Não é o que querem os homens do mundo. Ele queria sê mais forte do que Deus”. Noutro conto, 30. A Vela Milagrosa, um rei que exige coisas impossíveis ao filho por ter inveja dele é castigado porque “O pai impertinente torna o filho desobediente”. Embora fosse um grande assassino, o protagonista do 36. O Ladrão Gaião, arrepende-se na hora da morte e vai direito para o céu. O seu irmão, que era muito santo, declara que, sendo assim, por si devia de ser igual a Deus, e acaba por receber o castigo que estava destinado ao irmão: “Sim, senhor, qu’aquilo já foi com soberba qu’ele falou”. A moral também é explícita no caso de 48. O Rapaz que Ia Sempre Ouvir Missa, embora o patrão lho proibisse. Parecia que continuava a trabalhar quando estava na igreja, e lavrava mais terra do que ninguém. O patrão e os outros empregados acabam por se converter. O patrão deixa-lhe quase tudo o que é seu, e o rapaz torna-se riquíssimo “devido ao que Nosso Senhô le fazia”.

Alguns informantes colocam os seus contos em locais relativamente próximos, ou bem conhecidos, a fim de lhes conferir verosimilhança e aumentar o interesse dos ouvintes. O Sr. Silveira não sente necessidade de se valer desse recurso. Embora as suas histórias sejam frequentemente colocadas em ilhas102, não se especifica de quais se trata. As únicas excepções são o 66. A Enxada, cujo protagonista se encontra no Miradouro, provavelmente o de Santa Cruz das Flores, freguesia onde o informante tinha nascido, e o 74. A Porca Quer Porco, colocado na ilha de São Miguel103. Outros contos decorrem no estrangeiro. No 42. O Retratista de Portugal, parte da acção tem lugar na Inglaterra e na França. No 16. A Margarida dos Fundos do Mar, a heroína vê-se obrigada a viajar até à Índia a fim de encontrar o príncipe com quem estava para casar. O Oriente também é mencionado como fonte de lindos tecidos e de riqueza. A roupa da China era “da melhor que podia haver” (44), mas também se ia às Índias para comprar belos vestidos (20), assim como uma tinta que só lá existia (26). Nas Índias e na China também havia grandes diamantes (11).

Naturalmente, encontramos referências aos Estados Unidos e à imigração. Os protagonistas de 40. O Conto dos Ovos e de 66. A Enxada, tinham estado na América. A árvore maravilhosa que figura em 32. Os Sonhos das Três Irmãs, faz lembrar as gigantescas sequoias que o informante tinha visto em Eureka, no norte da Califórnia: “Quando ê fui pra Ouricas, ‘tava um pau furado que passava a estrada”. A ponte da qual o protagonista de 37. O Filho que Matou o Pai atira com um molho de chaves para o mar talvez fosse americana: “ê nã sei se foi a ponte de Nova Iorque”.

Apesar da grande popularidade de anedotas do Bocage104, tanto o Sr. Silveira como os outros quatro informantes não sabiam ou não tinham interesse em gravá-las. Deviam preferir outro subgénero, as anedotas sobre padres. O Sr. Silveira contou três (55, 68, 69); os outros informantes contribuíram com cinco (86, 87, 88, 89, 90). Ao contrário do que se possa pensar, estas anedotas não representam uma indicação de anti-clericalismo. Embora o povo das freguesias aprecie o que os padres fazem por eles, também gosta de rir.

Estas anedotas e outras, como se sabe, costumam ser relativamente curtas. Alguns contos que se relacionam com o género por também servirem para rir são designados como “maravilhosos” devido à inclusão de magia, elementos sobrenaturais, e à sua extensão. No 25. A Princesa Muda, o rei promete dar a filha em casamento a quem a fizer falar. Um rapaz pobre consegue, mas ela prefere um príncipe e o rei mete o rapaz na prisão. Na noite do casamento o príncipe é atacado pelos aliados do rapaz – um rato, um grilo, um carocho, um montão de formigas – e não consegue fazer o amor com a mulher, a qual se queixa ao pai. Como se passa o mesmo na noite a seguir, o rei dá um ultimato ao príncipe: “S’amanhã nã foderes, vais morrer”. Não se diz se morre ou não, mas quem casa com a princesa é o rapaz. Outros contos relativamente extensos com elementos de anedota são 27. O Bom Rapaz, 28. Segritana, 61. O Fode-Tudo, 64. Puputiriru, 65. Sotavento e Barlavento e 70. O Acordeão.

Embora os contos sejam muito antigos e se transmitam com poucas mudanças, começam a incorporar novas invenções. No 4. A Bênção do Pai, os maus irmãos vão ao cinema, deixando o mais novo atrás. No 26. O Palácio Feito em Diamantes, o protagonista ataca o rei com um grande porta-aviões.

Dois contos desta colecção despertam grande interesse devido à sua relação com a literatura antiga. Em 64. Puputiriru105, uma prostituta propõe uma aposta a um padre, a um capitão e a um soldado, dizendo-lhes que se deitará de graça com o que lhe souber responder a três perguntas. O soldado acerta em todas: a coisa mais bela são os lindos “altares” da prostituta; a coisa mais formosa é a sua linda vagina (gesto), e o “puputiriru” é o pénis [outro gesto]106.

Em última análise, esta história relaciona-se com uma que se encontra num livro budista escrito pelo menos três séculos antes de Cristo, onde temos uma perdiz, um macaco e um elefante em vez de três perguntas. Um texto persa do século XIII transforma os animais em seres humanos, um muçulmano, um cristão e um judeu que viajam juntos. Numa variante árabe posterior, os viajantes são Jesus, S. Pedro e Judas. Nestas duas versões, o que tiver o melhor sonho comerá o pouco de comida que lhes sobra107.

O conto parece ter chegado à Peninsula devido à invasão árabe de 711, sendo incluído na Disciplina clericalis de Pedro Alfonso de Huesca, um judeu que se converteu à fé cristã em 1106. Dois burgueses e um aldeão a caminho de Meca já só têm farinha bastante para fazer um pequeno pão. Para comê-lo sozinhos, os burgueses decidem que quem tiver o melhor sonho é que fica com o pão, mas o aldeão levanta-se enquanto eles dormem e papa-o108. Esta versão, que entrou provavelmente na Europa graças a Pedro Afonso, ainda se conta, com variantes, em Espanha109, América espanhola110, Portugal, Brasil, Cabo Verde111, tendo-se espalhado também através da Europa e da América do Norte112.

Na versão do Sr. Silveira os protagonistas não viajam juntos, temos três perguntas em vez dum sonho, e o prémio deixa de ser um simples pão. Isto deve-se ao sentido metafórico adquirido pela palavra “pão” durante a Idade Média, a qual também podia designar outro tipo de “comida” – “vagina” ou “mulher”113. Esta transformação documenta-se pela primeira vez em Les cent nouvelles nouvelles (1515) de Philippe de Vigneulles114, onde o vencedor, um monge, responde “il n’y a aujourd’hui plus beau umbraige que de courtine, plus beau coussin que de tetine ne clinquailles que de coillons” (Hoje em dia não há mais bela sombra que de cortinas de dossel, mais bela almofada que tetas, nem melhor som que o de colhões). Agora a vagina que substitui o pão fica como pano de fundo, por assim dizer, com o som de colhões em primeiro lugar. François Rabelais inclui uma variante em Pantagruel (1532)115, e Nicolas de Troyes tem outra no seu Grand parangon des nouvelles nouvelles (ca. 1536)116. Na versão de Timoneda em Buen aviso y portacuentos (1564), a resposta do vencedor é “Sombra de pauellon, vista de gentil muger, ruydo de colchones”117. A palavra “colchones” rima com “cojones”, e é provável que Timoneda a escolhesse por achá-la menos licenciosa. Obviamente, o som dos “coillons” corresponde ao “puputiriru” do conto do Sr. Silveira. Uma versão portuguesa de Leiria, onde uma princesa proclama que só casaria com o homem que lhe dissesse o que ela queria ouvir, abandona todas as travas. O padre e o capitão que se apresentam respondem mal, mas o soldado que a princesa escolhe sai-se com esta: “Ó menina, pra luxo os meus botões; prà minha fortaleza o meu caralho e reque-treque os meus colhões”118.

Outro conto com conotações literárias interessantes é 65. Sotavento e Barlavento. Quando chega um navio, uma prostituta muito bonita põe à janela um letreiro desafiando aqueles que sabem navegar para uma aposta. Chega um capitão. Ela coloca uma bacia no meio do quarto, explicando que se trata do mar, e que ela própria será o barco. Se o capitão o souber guiar, sem dar à costa, ganhará um tanto e irá para a cama com ela; se não souber, pagará a mesma quantia e ficará com as mãos a abanar. O capitão permanece com os braços cruzados enquanto ela gira em volta da bacia e acaba por “dar à costa”, derramando a água no chão.

Ao saber do sucedido, um marinheiro decide tentar a sorte. Ela começa a girar. Quando vai para se lançar sobre a bacia, o marinheiro grita: “Mais para sotavento!” Quando ela vem da outra banda, ele manda: “Mais para barlavento”. Depois ele manda-a deitar os panos (velas) para baixo, um por um. Finalmente, grita: “Lá vai a embarcação pò leme”, e leva-a “guiadinha prà cama”119.

O que aqui temos é o tópico da nave ou travessia de amor (navigium amoris), em que o mar representa o amor, o barco ou o navio a mulher, e o marinheiro ou remador o amante. Embora não seja possível prová-lo, o tópico é provavelmente de origem folclórica e de carácter universal. No Ocidente, documenta-se por primeira vez na poesia grega do século VII antes de Cristo, sendo perpetuado na literatura romana, na poesia dos goliardos, e através das literaturas europeias da Idade Média e do Renascimento120.

Além de contos, a colecção inclui três lendas: 75. D. Sebastião, 76. O Náufrago e 93. Santo António e os Passarinhos. A primeira consiste num fragmento onde se mistura a lenda de D. Sebastião, morto em Marrocos na batalha de Alcácer Quibir (1578), com a do rei Artur e a legendária espada Excalibur121. Artur arranca a espada da pedra em que estava metida, provando assim que era o verdadeiro rei. Segundo o Sr. Silveira, D. Sebastião tinha enterrado a sua espada numa pedra, dizendo: “Fica-te, espada. Quem te meteu aqui é que t’há-de arrancar”. Na segunda lenda, os 30 ou 40 sobreviventes dum navio que se tinha afundado junto à costa das Flores vão parar ao hospital de Santa Cruz, mas desaparece um deles, e não há maneira de encontrá-lo. Quinze anos depois o homem aparece à porta do hospital. Não tinha envelhecido, e não sabe explicar onde tinha estado nem como ali se encontrava. A terceira, conhecida lenda sobre o modo como Santo António encerra num palheiro a praga (passarinhos) que comia o trigo que o pai lhe manda vigiar para poder assistir à missa, também existe em verso através de Portugal, Castela e Catalunha122.

O culto do Senhor Espírito Santo, trazido para os Açores pelos primeiros povoadores, no século XV, recordamos, mantém-se com grande vigor, e deu origem a histórias que não cabem na categoria de lendas. Como quem as conta crê firmemente nelas, talvez fossem melhor classificadas como testemunhos. Os descrentes que insultam o Senhor Espírito Santo são castigados (38, 39, 92), as promessas devem ser seguidas à risca (78, 94), e os crentes como o Sr. Silveira vêem a sua fé premiada. Ele tinha ficado subitamente doente, com uma grande mamula (tumor) numa perna. Parecia que ia morrer. Faz uma promessa ao Divino Espírito, acorda com a casa cheia de gente, já a velá-lo, e o tumor tinha desaparecido. Como ainda estava fraco, sem poder andar, levam-no ao médico numa rede – ainda não havia carros. Ao vê-lo por segunda vez, completamente curado, o médico também conclui que se trata dum milagre, e fica com os olhos arrasados de lágrimas123.

Os textos foram transcritos o mais fielmente possível, a fim de reflectir a maneira de falar do Sr. Silveira e dos outros quatro informantes mas, para facilitar a leitura, reduz-se a repetição constante da conjunção “e”. Indicamos as repetições desnecessárias eliminadas e os poucos casos em que não foi possível entender as gravações com três pontos e um asterisco (…*). As dúvidas estão marcadas com um ponto de interrogação entre parênteses (?). A data das gravações e a sua localização nas cassetes indicam-se no fim de cada conto.

Como o Sr. Silveira era analfabeto, o seu português é claramente rural, incluindo regionalismos e arcaísmos cujo estudo, infelizmente, não faz parte do presente projecto124. Por vezes empregava provérbios: “O frade não leva três em capelo” (14, 19, 26, 47 e 57), “Um pai impertinente torna o filho desobediente” (30), “Quem tudo quer tudo perde” (49), “Faz para que te façam” (Faz pa te fazeres) (51). Entre as frases proverbiais, temos a raposa que engana o leão por ser “fina com’ũa raposa” (1), uma tartaruga engana outra por ser “fina, qu’era com’ũa rata” (2), e um aflito protaganista que exclama: “Agora é qu’a porca troce o rabo!” (67).

O Sr. Silveira também usava anglicismos correntes na comunidade portuguesa: “estoa” (ing. ‘store’) em vez de “mercearia”, “fomane” (ing. ‘foreman’) por “capataz”, “mexas” (ing. ‘matches’) por “fósforos”, “rancho” (ing. ‘ranch’) por “granja”, etc.

O corpus está dividido em grandes categorias, seguindo a adaptação de ATU por Cardigos-Correia. A classificação dos contos do Sr. Silveira é a seguinte: Contos de animais (1–2), Contos maravilhosos (3–34), Contos religiosos (35–40), Contos realistas (novelescos) (41–51), Contos do gigante (diabo) estúpido (52–53), Contos jocosos (54–71) e Contos formulísticos (72). Seguem-se os materiais sem classificação (72–80). Os outros informantes gravaram dez contos jocosos (81–90) e quatro histórias sem classificação (91–94).

Transmitidos de boca em boca desde tempos imemoriais, os contos são de carácter indo-europeu, sendo repetidos em várias línguas desde a Índia e o Médio Oriente até à Europa125.

Nesta colecção, cada conto começa com um resumo em inglês; é seguido pela classificação de Paulo Correia segundo o catálogo internacional de Hans-Jörg Uther (ATU), continuando com secções dedicadas a Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Goa, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor. Finalmente, seguem-se secções dedicadas à zona cultural ibérica – Espanha, América espanhola, e Sefarditas (descendentes dos judeus expulsos de Espanha e Portugal em 1492 e 1497, respectivamente).

Graças a omissões ou novas recolhas, os investigadores adicionam por vezes novos contos-tipo ao catálogo internacional. Cardigos-Correia classificaram três pela primeira vez: 58. O Burro Falante (1529*C), 63. O Tesouro do Espertalhão (1539*D), incluído como contaminação em O Carro da Lenha Mais Torta que Há, e 64. Puputiriru (1626*B). O 11. As Torres de Mar em Belém, foi classificado em Espanha (Ca-Ch 325A). Embora Jason tenha classificado os números 38. A Quarta Irmandade e 39. O Descrente (779*A e 779*B, respectivamente), como contos, a verdade é que são mais aparentados com a lenda. Este livro conclui com cinco apêndices: vocabulário (os anglicismos estão colocados no fim), informantes, motivos, e duas listas de tipos. Os motivos derivam de Antti Aarne e Stith Thompson (AT), da expansão daquele catálogo por Hans-Jörg Uther (ATU), e do Motif-Index de Stith Thompson (1955–1958). Enumeram-se no fim dos contos onde se documentam e, para conveniência de outros investigadores, decidi juntá-los num apêndice. Seguem-se os contos-tipo desta colecção. O quinto e último apêndice reúne os contos-tipo portugueses recolhidos na América do Norte (Califórnia, Massachusetts e Canadá).


1 Nas páginas que seguem, adapto partes da introdução escrita para o romanceiro da Nova Inglaterra (Fontes 1980, pp. xiii-xxix), o qual foi gravado na mesma altura em que se fez esta recolha, e traduzo as citações em inglês.

2 Houve duas excepções importantes. Quando os holandeses conquistaram o Norte do Brasil em 1631, muitos dos judeus portugueses que se tinham refugiado na Holanda para fugir à perseguição religiosa mudaram-se para aí. Depois da reconquista do Recife em 1654, viram-se obrigados a procurar novo refúgio, estabelendo-se em Nova Amesterdão, a actual Nova Iorque (Edelfsen 1952, p. 263). Em seguida vieram cerca de 1.000 protestantes madeirenses, os quais tinham sido convertidos por um missionário escocês que parara na Madeira em 1838 para se restablecer duma doença quando ia a caminho da China. A oposição do povo local obrigou-os a partir para Trinidad em 1849 mas, como as condições de trabalho eram más, acabaram por se radicar nas zonas de Jacksonville e Springfield, Illinois, convidados pelo povo dessas cidades (Pap 1964, pp. 406–407).

3 Warrin e Gomes 2001, p. 10.

4 Lang 1892, p. 10.

5 Edlefsen 1952, p. 266.

6 Warrin 2010, pp. 84, 310.

7 Warrin 2010, pp. 323–325 (tabela).

8 Um deles foi meu bisavô, Jorge Machado Fontes. Não achou ouro, mas ficou a trabalhar na baleagem costeira entre São Francisco e Monterey até 1870, quando decidiu regressar a S. Jorge.

9 Edlefsen 1952, p. 264.

Details

Pages
LXXVI, 938
Year
2023
ISBN (PDF)
9781433193668
ISBN (ePUB)
9781433193675
ISBN (Hardcover)
9781433193651
DOI
10.3726/b19143
Language
Portuguese
Publication date
2023 (November)
Keywords
Folklore Folktales Indo-European Azores Immigration Massachusetts Tale Types Motifs Lusophone Hispanic Literature Regionalisms Contos Populares Portugueses de Massachusetts Portuguese Folktales from Massachusetts Manuel da Costa Fontes Archaisms
Published
New York, Bern, Berlin, Bruxelles, Oxford, Wien, 2023. LXXVI, 938 pp., 1 b/w ill.

Biographical notes

Manuel da Costa Fontes (Author)

Manuel da Costa Fontes, Professor Emérito, é especialista nas Literaturas Ibéricas da Idade Média e do Renascimento, com ênfase no Romanceiro, relações entre o folclore e a literatura, Cripto-Judaísmo e técnicas utilizadas por escritores Cristãos-Novos para expressar ideias perigosas apesar da Inquisição. Manuel da Costa Fontes, Professor Emeritus, is a specialist in Iberian Literatures from the Middle Ages and Renaissance, with emphasis on traditional Portuguese ballads, the relationship between folklore and literature, Crypto-Judaism, and the techniques used by New-Christian writers to express dangerous ideas despite the Inquisition.

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Title: Contos Populares Portugueses de Massachusetts (Guilherme Alexandre da Silveira) / Portuguese Folktales from Massachusetts